Reflexão do Evangelho

Sou quem viu a dor de perto! A dor e o silêncio a partir das Lamentações

 

Por Rafael Rodrigues da Silva*

 

O Livro das Lamentações é um pequeno livreto de salmos e orações do povo que expressa a dor que sentiram diante da invasão do império babilônico que arrasou a cidade, matou muita gente, violentou mulheres e crianças e saqueou as riquezas da cidade.

Os Salmos de Súplica mostram a situação difícil e grave que uma pessoa ou comunidade está vivendo. O pedinte diante dos conflitos e tensões suplica para que Deus possa ouvi-lo. Seja o grito de um doente que pede a Deus a cura (Sl 6; 38) ou do justo que é injustamente caluniado e perseguido (Sl 7) ou que Deus não esqueça dos pobres no julgamento (Sl 10). Assim poderíamos percorrer todos salmos de súplica e perceber que as orações de lamento têm várias maneiras de apresentar as queixas diante de Deus (“Javé, escuta minhas palavras, leva em conta o meu gemido. Ouve atento meu grito por socorro…” – Sl 5).

No Livro das Lamentações encontramos uma mistura entre cantos fúnebres, lamentos individuais e coletivos. É um livro que gira em torno da situação de cerco, cativeiro, fome e destruição da cidade através da ação dos babilônicos (597-587 a.E.C.). Ali aparecem os lamentos em tom coletivo nos capítulos 1-2 e 4-5 e o grande lamento individual do capítulo 3, que está no centro do livro. Valeria a pena ler atentamente estas orações e perceber as marcas de opressão, os resultados do processo de desumanização e os sinais de resistência do povo. Os gritos e o silêncio pela dor de muita gente ecoam nestes cantos e revelam em cada linha o sangue derramado, a luta pela vida e a teimosia da esperança.

No Livro das Lamentações ecoa o silêncio de Deus diante do grito e da dor do povo. Por que está acontecendo tudo isto? Quais as causas? De quem é a culpa? Onde está Deus? Tudo aconteceu porque pecamos? E por aí seguem as interrogações que estão no silêncio e no grito do povo. Quando começam a juntar as incertezas e inquietações, abre-se um espaço fundamental tanto para ecoar a dor e sofrimento, quanto para descrever os instrumentos de opressão e de desumanização presentes por trás de cada lágrima e cada grito.

A terceira lamentação começa com esta afirmação: “Eu sou aquele que viu a dor de perto!” Este “ver” implica em olhar com atenção, ouvir, sentir e experienciar a dor. Certamente esta frase que abre o lamento quer provocar uma pergunta em meio ao silêncio: “qual foi a for que você viu?”

Eu vi muita gente gemendo com fome e na busca por pão (1,11); crianças pedindo comida e ninguém lhes dava nada (4,4); outras crianças morrendo no colo de suas mães (2,12); muitas crianças e bebês desfalecendo pelas ruas  (2,11); muita gente arriscando a vida para trazer alimento para casa (5,9) e os anciãos e lideranças foram mortos enquanto buscavam por comida (1,19); muita gente tentando desfazer de objetos para aplacar a fome em meio aos ataques (1,11). Nossa pele queima como forno, torturada pela fome (5,10).

Eu vi o povo pagando pela água para beber e pela lenha (5,4) e o sentimento de todos de que era melhor morrer pela espada do invasor do que morrer lentamente de fome (4,9).

Eu vi as mulheres sendo violentadas e as jovens sendo abusadas (5,11); os velhos sendo desrespeitados (5,12.14); os jovens sem alegria e obrigados aos trabalhos forçados (5,13.15). A morte reinava dentro e fora de casa (1,20; 2,20).

Eu vi muita tristeza e a cidade estava em completo luto e pranto (1,4), onde os jovens não cantavam mais (1,4; 5,14), os velhos não se reuniam nas portas (5,14), as festas se transformaram em lamentos (5,15) e as jovens não dançavam por causa da tristeza (1,4; 2,10). Acabou a alegria e não há consolo diante de muita dor (1,2.9.16; 2,13; 5,15).

Eu vi a opressão e a exploração, onde os jovens foram deportados e outros obrigados aos trabalhados forçados (1,18; 5,13). Não há quem nos livre e o jugo chegou ao nosso pescoço (4,17; 5,5). O povo esgotado pela opressão e sem descanso (1,3; 5,5).

No Livro das Lamentações ecoa a resistência e a luta do povo oprimido. Em cada canto da cidade e em cada canto do país começa um mo(vi)mento que lembra, recorda, recolhe histórias e experiências, resiste, protesta e teimosamente “esperançam” Recriam a vida a partir do grito e do silêncio. Na escuridão lembram uma antiga profecia: “O povo que era andava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam uma terra tenebrosa. Multiplicaste sua alegria, aumentaste seu prazer. Vão alegrar-se diante de ti, como na alegria da colheita, como no prazer dos que repartem despojos de guerra. Porque como no dia de Madiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados. Porque toda bota que pisa com barulho e toda capa empapada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas. Pois criança nasceu para nós, filho foi dado para nós” (Is 9,1-5a).

Este momento novo de recriar a vida e de esperançar tem seu pontapé inicial no arriscar a vida pela vida (“Arriscamos a própria vida pelo pão” – Lm 5,9) e sua força na confiança do Deus da vida que escuta seus gritos, choros e silêncios. Em meio a tamanha dor era preciso desconstruir a necroteologia do “abandono de Deus” e do “castigo pelo pecado”. Ah! Teologia da escuridão que justificava tudo e determinava que o povo oprimido era o único culpado e responsável por sua dor e sofrimento.  Esta teologia descreva que a situação do povo empobrecido e oprimido era resultado do castigo de Deus. A cidade solitária e banhada em lágrimas, foi castigada/desolada/afligida por Javé (1,4.5.12; 3,32), que do céu  jogou um fogo e armou um laço contra a cidade(1,13). Tornou as culpas do povo um fardo e entregou-os nas mãos dos invasores (1,14), dispersou todos os fortes e pisou na cidade como pisa a uva no lagar (1,15) e ordenou que os opressores atacassem (1,17). Em sua ira, Javé escureceu o templo (2,1), arrasou sem piedade todas as moradas e em seu furor, destruiu as fortalezas (2,2), cortou o poder de Israel e cruzou os braços (2,3). Javé concluiu seu ódio e derramou sua ira (4,11), os espalhou e não cuida mais deles (4,16).

Desconstruir esta visão de um Deus que despreza, abandona. castiga e destrói, o povo oprimido e machucado não foi tarefa fácil. Aparece neste pequeno livro de cantos de lamento a dimensão da confiança em Deus: que Javé possa olhar para o sofrimento (1,9), “Olha, Javé, e presta atenção: como estou rebaixada!” (1,11), Javé é justo (1,18). A terceira lamentação que faz um contraponto entre um Deus surdo diante das súplicas (3,8) e as lembranças que transmitem esperança (3,21): a solidariedade e a compaixão de Javé (3,22 e 32 – práticas fundamentais na defesa e caminhada dos profetas, especialmente na profecia de Oséias). O canto reconhece que a força destas ações de Javé está na fidelidade, pois “Javé é bom para os que nele esperam e o procuram” (3,25). Bom aguardar em silêncio (3,26), porque Javé não rejeita para sempre (3,31).

A confiança e certeza da solidariedade e compaixão de Deus, tem reforço nestas duas estrofes do canto:

“Do fundo da fossa, invoquei teu nome, ó Javé.

Ouve minha voz, não feches o ouvido ao meu apelo.

Tu vieste na hora em que eu chamei, e respondeste: Não tenha medo.

 

Tu te encarregaste de defender a minha causa e resgatar minha vida.

Tu viste, Javé, que sofro injustiça: julga minha causa.

Viste a vingança deles contra mim.” (3,55-60)

 

A certeza maior que o povo tem é que Javé permanece para sempre e que se renova a aliança: “faze que voltemos para ti, Javé, e voltaremos; renova os tempos passados” (ver 5,19-22).

Portanto, no Livro das Lamentações o silêncio pela dor se transforma em resistência e faz da teimosia da esperança qual flor sem defesa, bonita e nascida em terra seca sem adubo”. Do silêncio, do grito e da dor brota uma flor que na teimosia aponta que Deus escuta os clamores do povo, enxuga as lágrimas, é solidário e faz justiça.

O povo desde o cativeiro transmitiu seus cantos e o silêncio pela dor. Canto que fortalece a resistência e a luta.  Canto que descreve a dor que viram e vivenciaram naqueles dias terríveis do ano de 587 a.E.C.  E recebemos deste povo uma pergunta: Qual a dor que vocês estão vendo no Brasil nestes dias da Covid-19 no ano de 2020?

Reflitam e demonstrem para tantos irmãos e irmãs a dor que vocês estão vendo.

*Diretor Nacional do CEBI, assessor bíblico e professor.

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