Reflexão do Evangelho

Jesus liberta de todos os males

Leia a reflexão sobre Marcos 1.21-18, texto de Mauro Alberto Schwalm.

Boa leitura!

1. Primeira aproximação ao texto

Marcos 1.21-28 é um texto enxuto, claro, objetivo. Não faz rodeios. O evangelista Marcos situa-o numa concatenação de informações igualmente ágeis. Ele informa o que considera importante e o dá por certo. Não gasta muita tinta em argumentação. Nisto Mateus e Lucas são diferentes: são mais detalhistas no início de seus evangelhos. Mas o texto em si é basicamente idêntico ao que aparece em Lucas 4 (Mateus não o apresenta). Aparentemente as diferenças mais significativas são a afirmação, em Marcos, de que Jesus não ensinava como os escribas (v. 22), e em Lucas a observação de que o homem curado não se feriu mesmo ao ser lançado ao chão (v. 35). Quanto à terminologia usada, há um dado interessante. Marcos apenas usa o termo que designa o espírito daquele homem como imundo, impuro (akáthartos), ao passo que Lucas usa duas formas para referir-se ao mesmo: além de falar em espírito imundo, explicita tratar-se de um espírito do demônio (pneüma daimoníou). Ambos os textos ajudam a se complementar, portanto, no que diz respeito ao seu conteúdo.

2. Estrutura do texto

O texto evidencia uma estrutura simples que pode ser sintetizada da seguinte forma:
A- vv. 21-22: chegada a Cafarnaum / ensino na sinagoga / manifestação de admiração (palavra)
B – vv. 23-26: episódio de libertação do mal (palavra + ação)
C – vv. 27-28: manifestação de admiração (fama)

A) vv. 21-22: Marcos inicia a sua narração, situando o leitor geograficamente numa descrição de movimento: acompanhado dos recém-vocacionados André e Simão, Tiago e João, Jesus entra em Cafarnaum. Somos informados de que logo foi pregar na sinagoga, no sábado. Não está dito se entraram em Cafarnaum num sábado ou se já estavam por lá há alguns dias. Os ensinamentos de Jesus geram admiração e imediatamente levam a reconhecer em Jesus uma autoridade diferente, que se destacava em relação à autoridade dos escribas. Podemos supor aqui que o estilo dos escribas não era cativante ou, pelo menos, que era meramente mecânico, repetitivo, e que em Jesus os ouvintes sentiram criatividade e novidade, uma vez que sua palavra sempre estava relacionada à ação.

B) vv. 23-26: Sem demora, Marcos passa a um novo quadro no qual outro personagem aparece, vindo a constituir o núcleo da narrativa. Em meio ao povo que visitava a sinagoga naquele sábado, estava um homem do qual se diz que tinha ou era tido por um espírito imundo. Este se dirige a Jesus, questionando-o e reclamando que a sua presença o ameaçava e intimidava de alguma forma. Isto fica claro quando o espírito imundo manifesta medo de ser destruído. E ele não se manifesta no singular (eu), e sim, no plural (nós). Ou seja, o espírito imundo, na verdade, apresenta-se como sendo não um só, mas uma coletividade. Há uma clara separação entre aquela pessoa e a força que nele agia e falava. Marcos relata os acontecimentos subsequentes de forma natural e simples, sem alardes. Ele nos informa que Jesus tão somente chamou a atenção do espírito imundo, ordenando que saísse, que o mesmo bateu em retirada rapidamente, ainda que gerando alguma agitação e protestando em voz alta.

C) vv. 27-28: A narrativa de Marcos faz saber que o povo se agita e confirma o que já fora anunciado anteriormente no v. 22: quem presenciou o que está sendo narrado admira-se e se espanta com a doutrina e com a ação de Jesus. Isto aparece resumido mais uma vez na palavra autoridade. Antes, referia-se à autoridade dos seus ensinamentos. Agora, refere-se à autoridade da sua palavra sobre espíritos imundos. Neste momento, evidencia-se a unidade entre palavra e ação: a ação está vinculada com a palavra e o ensino. Como não poderia deixar de ser, as pessoas encarregam-se de espalhar a notícia em toda a região da Galileia. A admiração e o espanto diante do que aconteceu são transformados em divulgação e resultam em fama para Jesus.

 3. Meditação

O texto que temos diante de nós não é dos mais fáceis. Se considerarmos seriamente que, ao pregarmos sobre os milagres de Jesus, não estamos a falar de histórias inventadas, então o ceticismo precisa ceder lugar à fé. Mas, não podemos negar que essa perícope do Evangelho de Marcos apresenta um episódio que provoca certa inquietação. Afinal de contas, ela fala da cura de um homem identificado como dominado por um espírito mau. E, na nossa tradição, sempre tivemos certa dificuldade com esse assunto. E não estou bem seguro se podemos reduzir tudo a uma explicação de cunho antropológico ou cultural. A verdade é que normalmente preferimos não entrar muito fundo nesses relatos. Independentemente disso e curiosamente, alguns dos filmes de maior sucesso são justamente os que abordam e tratam do mistério de forças ocultas, de histórias de terror que misturam fé e crendices.

De forma não muito diferente, algumas das igrejas que mais seduzem pessoas atualmente são as que oferecem exorcismes de toda espécie. Nessas igrejas, fala-se muito das forças do mal e se proclama aos quatro ventos que seus líderes possuem o poder para vencer tais forças em nome de Jesus.

Por isto, lidar com este texto tornou-se difícil. Como aceitar a sua mensagem e a sua verdade, sem deslizar para o ceticismo, se há tantos excessos por aí? Excessos gerados pela indústria do entretenimento e excessos também em igrejas. Excessos que ridicularizam o que, na narrativa bíblica, é apresentado de forma séria e cuidadosa, sem estardalhaços. Hoje, há muito sensacionalismo por aí. Mas este texto do Evangelho de Marcos não é sensacionalista. De forma alguma, Jesus foi sensacionalista.

O tema da possibilidade ou não de possessões demoníacas certamente é um dos mais polêmicos com os quais a comunidade cristã tem se debatido. Nem mesmo a exegese consegue chegar a consensos. Há diferentes posições. Não dá para esboçar aqui qualquer tentativa de responder à questão. A verdade é que o assunto é polêmico. Mesmo em igrejas históricas, o ímpeto para lidar com este fenômeno permanece latente, aparecendo uma vez com mais outra vez com menos intensidade. Há quem concorde com a opinião de que toda manifestação estranha pode e deve ser qualificada como manifestação demoníaca, sendo, portanto, passível de exorcismo. Neste caso, assume-se risco semelhante ao assumido por nações onde a pena de morte tem o amparo da lei: corre-se o risco de mandar um inocente para o corredor da morte. Distúrbios psicoemocionais podem ser confundidos com suposta possessão. Hoje, há igrejas que oferecem como explicação para todos os males que afligem o ser humano a noção do encosto. Quer dizer: livre-se do encosto pela mediação dos agentes dessas igrejas e estará livre da opressão, seja qual for!

Certamente não há apelo mais sedutor para quem sofre! Por outro lado, há quem defenda a ideia de que não há manifestação de nenhum tipo em se tratando de forças ocultas. Tudo seria racionalmente explicável com base em categorias antropológicas e culturais, psicológicas e parapsicológicas. Com isto, acaba-se o mistério, acaba-se o transcendental. Tudo é reduzido às categorias das possibilidades humanas. Porém, não seria consequência lógica de tal postura a necessidade de descrer de uma eventual ação do Espírito de Deus? Onde não há abertura para considerar a possibilidade da ação de forças que não nos agradam, não há por que crer na ação do Espírito Santo. Portanto, parece que o texto preserva a dinamicidade da autoridade de Deus sobre esse mistério.

Retornando ao texto, convém lembrar que, em momento algum, ele dá a entender que Jesus tenha ido intencionalmente ao encontro daquele homem possuído por um espírito imundo. Ele simplesmente foi à sinagoga! Ele foi à casa de oração do seu povo. E, nesta casa de oração, ele passou a ensinar, a pregar. E apenas de ouvi-lo falar, as pessoas já se admiravam de sua autoridade. Elas sentiam que seu ensinamento tinha alguma profundidade especial, era diferente. E a maneira que encontraram para dizer isso foi com estas palavras: ensinava como tendo autoridade e não como os escribas. Portanto, de acordo com Marcos, a autoridade de Jesus manifestava-se com clareza e profundidade tais que tocava não só a mente, mas também o coração e o espírito dos seus ouvintes, cativando-os.

E aí é que está! Quando isso acontece, as águas se dividem. O que é luz aparece como luz, e o que são trevas revelam-se como trevas. Foi impossível para aquele homem permanecer oculto com a sua inadequação. A doutrina e o ensinamento de Jesus forçaram a sua manifestação. Jesus não foi atrás, gritando e dizendo: Hoje, agora, a tal hora, vamos revelar espíritos malignos e expulsá-los. Ele pregou e ensinou com serenidade. E isto foi suficiente para os espíritos se dividirem. Jesus não fez encenação. Não deu espetáculo. Ele apenas repreendeu e deu uma ordem: Cala-te e sai dele. E isto bastou para que houvesse libertação! Esta descrição fica opaca e sem atrativos se comparada com o que acontece hoje em nome de Jesus em muitos lugares. Mas, é assim que se evidencia a sua autoridade! Assim se dá sua epifania, sua manifestação! Convém lembrar um dado decisivo: o que aconteceu não foi obra de pessoas, foi obra de Deus. Portanto, fenômenos assim só acontecem e se revelam onde Deus quer! O propósito do texto não é estimular ao exercício do exorcismo; ele não quer levar os cristãos a se dedicarem a uma pretensa prática de expulsão de demônios, como se estivesse em nós o poder de fazê-lo. O propósito do texto é revelar a presença de Deus em Jesus!

O texto dá a entender que o homem esperneia, debate-se, e é liberto. E uma vez mais, as únicas palavras que o povo da sinagoga encontra são estas: Jesus tem autoridade! Ele ordena, e até os espíritos malignos obedecem! E o povo é que começa a espalhar a fama de Jesus. Quer dizer, também no texto já transparece que o ser humano se admira com o extraordinário, com o incomum e lhe dá valor destacado, a ponto de se deixar envolver facilmente pelo que espanta seus olhos. Por isso, em outra ocasião, Jesus precisou exortar seriamente o povo que se deixa seduzir e iludir pela sua própria cobiça e desejo de encher a barriga, os olhos, os sentidos, mas que não compreende o essencial (João 6.22-35).

 4. Com vistas à pregação e celebração

Além do que foi apontado na meditação, ocorreram-me ainda quatro aspectos que podem ser de ajuda na preparação da pregação:

a) Não é possível negar que este texto coloca-nos diante da lembrança de que somos eternamente fascinados pelo mistério, pelas realidades ocultas. Ele confronta-nos com nosso medo, com nossa insegurança, com nossa fragilidade. Em outras palavras: há mais coisas debaixo do céu do que nós, na verdade, conseguimos compreender e explicar. E isto seduz, atrai, assusta. Filmes e igrejas fazem sucesso, porque mexem com o que não está sob nosso domínio! Mas é preciso sobriedade, pois a fascinação do ser humano pelo extraordinário deixa-o numa posição delicada, como a do peixe em relação à isca… E é preciso avaliar bem a isca!

b) Mas também não se pode deixar de observar o seguinte: só porque algo não está completamente em nosso poder, não significa que tenha poder sobre nós! Jesus não libertou aquele homem com a intenção de aparecer ou para ser considerado pelas pessoas como alguém que tem poder sobre forças ocultas. Esse tipo de poder dá fama e alimenta a vaidade. E Jesus não queria fama. Por isso, ele rejeitou as ofertas de Satanás! Embora Marcos não desenvolva este tema em detalhes, em Mateus e Lucas fica claro que Jesus rejeita as seduções diabólicas porque elas o colocariam no centro das atenções, gerando vaidade. O que Jesus queria era proclamar a misericórdia de Deus, misericórdia esta que pode libertar do mal em qualquer momento e em qualquer nível de gravidade. Libertar aquele homem foi coisa de Deus, e não coisa de pessoas. Por isto, não havia outras palavras para falar de Jesus senão dizer: ele fala e age com autoridade. Uma autoridade diferente, muito diferente!

c) O texto não autoriza ninguém a sair por aí vendo o demônio em todos os lugares e em todas as pessoas. Jesus não se preocupou em identificar o demônio. O que se pode depreender é que o demônio identificou Jesus! Nos nossos dias, há quem esteja mais interessado em encontrar o demônio por aí, para fazer sensação, do que encontrar Deus! Isso é uma grave e profunda distorção do evangelho! Quanto aos meios de comunicação social, talvez não seja exagerado afirmar que o diabo eclipsou Deus em matéria de popularidade. Mas uma coisa é certa: assim como há o Espírito de Deus, o Espírito da Verdade, há também espíritos de maldade, de mentira, de cobiça, de morte, de injustiça, de enfermidades. Se não fosse assim, não estaríamos em eterno combate com a velha criatura em nós. E é justamente para possibilitar libertação destes espíritos que Jesus veio da parte de Deus. E ainda que a comunidade cristã atue no combate ao mal e suas muitas manifestações, será somente no final dos tempos que ele será revelado e destruído para sempre.

d) Finalmente pode-se destacar que a nossa esperança tem sua fonte justamente nesta certeza: na convicção de que o melhor discernimento somente pode ser oferecido por Deus mesmo. Deus até pode usar pessoas para libertar de opressões ocultas. Mas ele não o faz para dar fama ou poder. Se ele o fizer, certamente será para resgatar a vida e restaurá-la em abundância, numa perspectiva comunitária! Este é o critério de Jesus.

Bibliografia

NAVONE, J. Diabo / exorcismo. In: Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 267ss.

SCHNIEWIND, Julius. O evangelho segundo Marcos. São Bento do Sul: Distribuidora Literária União Cristã, 1989. p. 37-38.

WITT, Osmar Luiz. Marcos 1.21-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. vol. XVI, p. 99-104.


Fonte:

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia

Nenhum produto no carrinho.