As cerca de 100 famílias que vivem no prédio da Cruz Vermelha, ocupado pelo Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), têm até sexta-feira, dia 20 de fevereiro, para desocupar o edifício da Rua Líbero Badaró, 595, ao lado do Mosteiro de São Bento. De acordo com a prefeitura, 70 famílias foram contempladas pelo auxílio aluguel no valor de R$ 400 porque foram consideradas de alta vulnerabilidade social, com base no cadastro da secretaria de Habitação. Os critérios para a escolha foram: mães solteiras com mais de dois filhos, deficientes físicos, idosos com mais de 65 anos, gestantes e pessoas com alguma doença grave. Quarenta famílias ficaram de fora e, por isso, precisaram arrumar outro local para viver.
A ocupação no edifício da Cruz Vermelha aconteceu em setembro do ano passado, depois da retirada violenta das famílias que viviam no Hotel Aquarius, na Avenida São João. Na ocasião, a Polícia Militar jogou bombas dentro do imóvel onde havia crianças e idosos, deixou feridos e gerou um pânico generalizado, como Ponte noticiou com imagens exclusivas. Pelo menos 180 pessoas foram integradas às 35 famílias que já viviam na ocupação Cruz Vermelha.
Para as lideranças do movimento de luta por moradia “se não foi todo mundo que conseguiu, a luta continua”. A Prefeitura de São Paulo, no entanto, divulgou uma nota em que reforça que ocupações não ganham prioridade no atendimento habitacional. Por isso, as 40 famílias sem auxílio seguiram, na semana passada, para um novo endereço. Dessa vez, no Brás.
A ocupação
As ruas estão vazias e uma garoa fina – que faz jus ao epíteto da cidade – cai sobre o Brás, bairro comercial no centro de São Paulo. Duas cadeiras vermelhas de plástico estão bem em frente ao número 859 da Rua João Boemer. Em uma delas está sentado um senhor que se apresenta como Remo e apesar de aparentar ter mais de 70 anos, diz que tem 55 e há quase 20 trabalha como vigia naquele local. “Edifício De Janira” indicam as letras pretas. “Nunca vi esse prédio funcionando”, afirma Remo apontando para a entrada principal do imóvel emparedada com tijolo baiano. O cheiro de xixi de gato é quase insuportável. A construção é antiga e a marquise de pouco mais de um metro de largura parece que vai ruir. Na fachada do prédio de dois andares, 12 janelas estão voltadas para a rua, mas não é possível saber ao certo a dimensão da construção. Na garagem, algumas placas de isopor, entulho e uma Kombi estacionada. O cenário é de abandono. A sensação é de tensão pela iminência do acontecimento. O único barulho é dos carros cruzando as ruas desertas.
Inesperadamente, quatro pessoas chegam abrindo passagem e arrombam o portão ao mesmo tempo em que um grupo de mais de 50 corre em direção ao número 859 da Rua João Boemer. São os integrantes do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) que moravam na Rua Líbero Badaró e não conseguiram o auxílio-aluguel da Prefeitura de São Paulo. “Se não for 100% não estamos satisfeitos. Tudo bem, várias pessoas conseguiram, mas e quem não conseguiu? A luta continua”, explica uma das coordenadoras do movimento, Renata Santos.
Na massa humana que corre, feições misturam desespero, fadiga pela longa caminhada e medo. Um carrinho de bebê e mais de 20 crianças com os olhinhos assustados acompanham a ação. “Silêncio pessoal. E andem logo, depressa, entrem e lá dentro a gente organiza”, pedia Renata Santos, 34 anos, uma das organizadoras dessa ocupação. Foi a segunda tentativa de entrar no prédio abandonado. Da primeira vez, na segunda-feira, 9 de fevereiro, dezenas de policiais militares expulsaram o grupo do edifício. “A gente não engoliu o que fizeram com a gente na segunda e voltamos.”
Todos para o lado de dentro e a apreensão dá lugar à euforia. O barulho aumenta e alguém grita no escuro por silêncio. Como formiguinhas, as pessoas vão se espalhando pelo imóvel, desbravando os cômodos e as possibilidades para que esse novo lugar seja chamado de lar. Edgar, um dos integrantes de ação direta, pede aos homens ajuda para fechar o portão com toras de madeira, caixas e tudo de mais pesado que estiver pela frente. As mulheres devem se ocupar em encontrar os melhores locais para acomodar crianças e os mais debilitados.
É difícil ultrapassar as barreiras que se impõem. Escuridão, pedaços de parede – e até do teto – no chão, muito lixo e entulho, móveis quebrados e um cheiro forte de mofo. Para subir até os apartamentos, um buraco na parede dá acesso a uma das escadarias. Mais entulho, mais sujeira, mais madeira podre. Em um dos lados do edifício, bastante deteriorado, não tem energia elétrica, mas, em compensação, tem muito espaço: são mais de 10 salas grandes. “Tem que pisar forte para matar a barata”, repetiu o pequeno Pedro, de 3 anos, batendo o pequeno pezinho no chão de taco todo arrebentado. Apesar do empenho do garoto, o prédio está em uma situação talvez inabitável. O pai de Pedro, Ailton, encontra o cantinho para a família e acomoda os poucos pertences que conseguiu trazer: a mamadeira do filho, um colchonete fino e cobertas. Apesar de precária, a estrutura agrada Ailton. “Você não vai acreditar, mas sabe que estou feliz com essas paredes? Na outra ocupação, as paredes eram de lençol ou saco de lixo e a criançada ficava correndo, passando de um lado pro outro, era impossível dormir. Agora vou conseguir descansar.”
No mesmo quarto vai morar Eliédi Oliveira e as duas filhas. Ela vive em ocupações há 9 meses, quando deixou de contar com a renda do marido. O salário de R$ 800 que ganha como arrumadeira em um hotel é pouco para o aluguel de R$ 550 por um quarto na Rua Barão de Piracicaba. Uma de suas filhas é Mariana, de 9 anos, que anda de um lado para o outro tentando iluminar os espaços com lanternas e celulares. Econômica nas palavras, Mariana é taxativa quando questionada sobre suas preocupações. “Com a polícia. Tenho medo que aconteça de novo, que eles voltem aqui, expulsem a gente daquele jeito horrível e a gente fique na rua.”
Algemas e coação
No começo da semana passada, o grupo ocupou o mesmo prédio. Seis viaturas foram mandadas para o local. “Não teve conversa. Eles foram agressivos, apontaram armas para as pessoas, chamaram a gente de vagabundo e bandido. Não somos vagabundos, estamos só lutando por moradia”, lembra Renata. Outra das líderes do movimento Ivaneti de Araújo, chegou a ser algemada e acusada de desacato, invasão de propriedade e cárcere privado. “Eu levantei a voz depois que eles esculacharam a gente, mas não ofendi ninguém e estava apenas sendo a voz daquelas pessoas que em pouco tempo não terão mais para onde ir”, disse Ivaneti. Além dela, outra integrante do movimento foi levada para a delegacia junto com uma pessoa que teria testemunhado o processo de ocupação.
No 8º Distrito Policial, na sala do delegado, os policiais militares pressionaram a testemunha a dizer que tinha sido retida pelas duas mulheres no local. Mas a testemunha negava. Afirmou que foi obrigada a assinar um papel sem ler e que no caminho até o distrito policial o PMs a induziam a dizer que tinha ficado preso na ocupação contra sua vontade.
As queixas foram retiradas e Ivaneti e Juliana foram liberadas. A Ponte procurou a Polícia Militar para comentar o assunto, mas até agora não obteve retorno.
Bolacha e mortadela
A arrumação da nova ocupação invadiu a madrugada. Com mais tranquilidade – e mais pontos de energia elétrica puxados no casarão – a composição dos quartos foi se definindo. “Eu não durmo há três dias, será que agora vai dar?”, desabafa em um suspiro um dos moradores. De um quarto iluminado, risos invadem o corredor entulhado de sujeira. Uma senhora dorme em uma das poucas camas que existem no imóvel. No chão, três mulheres conversam e seis crianças estão dormindo. Outras cinco comem mortadela com bolacha água e sal. “Meninada, aproveitem porque é a única refeição de hoje à noite e talvez de amanhã”, alerta o pai de uma delas.
Um grupo de quatro bolivianos encontra um canto para se estabelecer. Escolhem o escuro. São três mulheres, há quatro anos no Brasil, e um homem que vive no país há 13 anos. Vieram para trabalhar em oficinas de costura no bairro do Bom Retiro. Alguns angolanos e uma família de peruano completa o grupo de estrangeiros no edifício. “Hoje é isso pessoal, dormir sentado, sem luz, mas amanhã a gente vai começar a faxina, será outro dia e o sentimento será de vitória”, diz Renata Santos, coordenadora do MSTC.
A luta continua
Segundo uma das principais líderes do MSTC, Ivaneti de Araújo, o proprietário do edifício ocupado esteve no local e pediu que as famílias deixassem o imóvel alegando que está em reforma. Porém, em visita ao prédio, a reportagem da Ponteconstatou que não há nenhuma obra em andamento. Além disso, não há na prefeitura nenhum processo de pedido de alvará para reforma do endereço.
Segundo Ivaneti, Ali Fayad Khodr reclamou que havia uma boa quantia em madeira dentro do imóvel e uma Kombi. “Ele achou que íamos querer essas coisas. Eu disse que não queremos nada disso, que não nos interessa, que ele pode levar embora.” O movimento tentou duas saídas: ofereceu a ele um aluguel simbólico, fruto de um rateio entre as famílias da ocupação, ou a abertura de negociação com a prefeitura. Mas Ali não aceitou. A reportagem não conseguiu localizar o proprietário.
Para Renata Santos, coordenadora da Ocupação do Brás, muitas famílias procuram o MSTC com esperança de ter uma moradia digna. “É como um pai, uma mãe, sabe? A gente não pode abandonar. Algumas conseguiram, mas e as outras?”. O movimento afirma que não vai esmorecer e que, se necessário, resistirá. “Podem vir. Essa luta é nossa.”
Texto: Maitê Berna e Caio Palazzo (Ponte.org)