João Pedro Stédile é um dos principais líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entidade que envolve cerca de 1,5 milhão de membros que buscam terra para morar e trabalhar. São quais Abraãos que andam por muitas partes do Brasil buscando terras.
O Brasil é grande, muito grande, mas não parece ser suficientemente grande para abrigar esse contingente de mais de um milhão de pessoas com suas famílias e crianças. Isso porque nunca se fez uma reforma agrária. Quase todos os grandes países que deram certo, fizeram sua reforma agrária que lhes permitiu criar uma base ao desenvolvimento socialmente aceitável.
O MST conseguiu muitas vitórias: criou assentamentos, até pequenos frigoríficos com excelente qualidade de carne, locais para venda de vinhos muito bons e outras tantas frentes; fundou escolas de estudo com qualidade comprovada para preparar bons líderes e aprofundar criticamente as questões do Brasil para todos.
O MST é suprapartidário e zela por sua “absoluta autonomia” face a qualquer tipo de poder; basta dizer que somente no segundo turno, abertamente apoiaram Dilma Rousseff. Essa autonomia lhe permite apoiar projetos populares de quaisquer governos, mas simultaneamente lhe dá o direito de fazer duras cobranças com referência à política agrária.
É comovedor assistir às famosas “místicas” feitas no início de qualquer reunião do MST em qualquer parte do Brasil. Lá se celebra a luta, se contam as sagas vitoriosas, se exalta a vida e a resistência dos humildes e se invoca o nome do Deus, cujo filho, Jesus, foi um pobre, quem sabe “um sem-terra” daquele tempo e que ousou dizer: “Felizes de vocês pobres, pois de vocês é o Reino de Deus”.
Stédile foi um dos articuladores do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (leia mais AQUI) com o Papa em Roma. Nos debates, o Papa Francisco quis saber a partir da leitura que fazem de seus padecimentos, as causas que produzem miséria e morte em milhões de pessoas Não chamou cientistas sociais ou políticos, mas quis saber, a partir das vozes deles, os causantes desta situação desumana que os obriga a se organizar para poder sobreviver e avançar nos seus direitos.
O Papa Francisco deu-lhes total apoio nas questões fundamentais da crítica ao capitalismo desumano que chegou a chamar de “diabo”, da justiça social, do acesso à terra contra a sua concentração e da legitimidade das ocupações feitas em função da vida e do trabalho.
Neste contexto, João Pedro deu uma longa entrevista no dia 31/10/2014 ao jornal Il fatto quotidiano, que foi traduzida e reproduzida pelo Instituto Humanistas Unisinos (IHU) dos jesuítas de São Leopoldo. Pelo fato de os meios de comunicação não terem dado muito espaço ao evento de tal relevância (é a primeira vez na história do papado que um papa reuniu-se com os movimentos sociais populares do mundo inteiro tão mal compreendidos e até difamados em suas demandas), replicamos aqui parte da entrevista de João Pedro Stédile.
Vale a pena ler a história a partir do outro lado, daquele dos humilhados e ofendidos, quase nunca escutado pelos que detêm o poder.
Eis a entrevista.
Como nasceu o encontro no Vaticano?
Tivemos a sorte de manter relações com os movimentos sociais da Argentina, amigos de Francisco, com os quais começamos a trabalhar no encontro mundial. Assim, reunimos 100 dirigentes populares de todo o mundo, sem confissões religiosas. A maioria não era católica. Um encontro muito proveitoso.
O senhor é de formação marxista. Qual a sua opinião sobre o papa e a iniciativa vaticana?
O papa deu uma grande contribuição, com um documento irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós. Porque afirmou questões de princípio importantes como a reforma agrária, que não é só um problema econômico e político, mas também moral. De fato, ele condenou a grande propriedade. O importante é a simbologia: em 2.000 anos, nenhum papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos sociais.
O senhor foi um dos promotores dos Fóruns Sociais nascidos em Porto Alegre. Há uma substituição simbólica por parte do Vaticano em relação à esquerda?
Não, acho que Francisco teve a capacidade de se colocar corretamente diante dos grandes problemas do capitalismo atual como a guerra, a ecologia, o trabalho, a alimentação. E ele tem o mérito de ter iniciado um diálogo com os movimentos sociais. Eu não acho que há sobreposição, mas complementaridade. Em todo caso, assumo a autocrítica, como promotor do Fórum Social, do seu esgotamento e da sua incapacidade de criar uma assembleia mundial dos movimentos sociais. Do encontro com Francisco, nascem duas iniciativas: formar um espaço de diálogo permanente com o Vaticano e, independentemente da Igreja, mas aproveitando a reunião de Roma, construir no futuro um espaço internacional dos movimentos do mundo.
Para fazer o quê?
Para combater o capital financeiro, os bancos, as grandes multinacionais. Os “inimigos do povo” são esses. Como diria o papa, esse é o diabo. Mesmo que todos nós vivamos o inferno. Os pontos traçados do encontro de Roma são muito claros: a terra, para que os alimentos não sejam uma mercadoria, mas um direito; o direito de todos os povos de terem um território, seu próprio país, pense-se nos curdos de Kobane os nos palestinos; um teto digno para todos; o trabalho como direito inalienável.
Os Sem-Terra organizam cursos de formação sobre Gramsci e Rosa Luxemburgo. Nenhum problema para trabalhar com o Vaticano?
Nós vivemos uma crise epocal. As ideologias do segundo pós-guerra se aprofundaram. As pessoas não se sentem mais representadas. No entanto, essa crise também oferece oportunidades de mudança, desde que ninguém se apresente com a solução pronta no bolso. Será preciso um processo, um movimento de participação popular. E qualquer pessoa disposta a participar dele deve ser incluída.
Qual é a situação do Movimento dos Sem-Terra hoje?
A nossa ideia, no início, era a de realizar o sonho de todo agricultor do século XX: a terra para todos, bater o latifúndio. Mas o capitalismo mudou, a concentração da terra também significa concentração das tecnologias, da produção, das sementes. É inútil ocupar as terras se, depois, produzirem transgênicos. Não é mais suficiente repartir a terra, mas é preciso uma alimentação para todos, e uma alimentação sadia e de qualidade. Hoje visamos a uma reforma agrária integral, e a nossa luta diz respeito a todos. Por isso, é preciso uma ampla aliança com os operários, os consumidores e também com a Igreja. Somos aliados de qualquer pessoa que deseje a mudança.
O Brasil é grande, muito grande, mas não parece ser suficientemente grande para abrigar esse contingente de mais de um milhão de pessoas com suas famílias e crianças. Isso porque nunca se fez uma reforma agrária. Quase todos os grandes países que deram certo, fizeram sua reforma agrária que lhes permitiu criar uma base ao desenvolvimento socialmente aceitável.
O MST conseguiu muitas vitórias: criou assentamentos, até pequenos frigoríficos com excelente qualidade de carne, locais para venda de vinhos muito bons e outras tantas frentes; fundou escolas de estudo com qualidade comprovada para preparar bons líderes e aprofundar criticamente as questões do Brasil para todos.
O MST é suprapartidário e zela por sua “absoluta autonomia” face a qualquer tipo de poder; basta dizer que somente no segundo turno, abertamente apoiaram Dilma Rousseff. Essa autonomia lhe permite apoiar projetos populares de quaisquer governos, mas simultaneamente lhe dá o direito de fazer duras cobranças com referência à política agrária.
É comovedor assistir às famosas “místicas” feitas no início de qualquer reunião do MST em qualquer parte do Brasil. Lá se celebra a luta, se contam as sagas vitoriosas, se exalta a vida e a resistência dos humildes e se invoca o nome do Deus, cujo filho, Jesus, foi um pobre, quem sabe “um sem-terra” daquele tempo e que ousou dizer: “Felizes de vocês pobres, pois de vocês é o Reino de Deus”.
Stédile foi um dos articuladores do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (leia mais AQUI) com o Papa em Roma. Nos debates, o Papa Francisco quis saber a partir da leitura que fazem de seus padecimentos, as causas que produzem miséria e morte em milhões de pessoas Não chamou cientistas sociais ou políticos, mas quis saber, a partir das vozes deles, os causantes desta situação desumana que os obriga a se organizar para poder sobreviver e avançar nos seus direitos.
O Papa Francisco deu-lhes total apoio nas questões fundamentais da crítica ao capitalismo desumano que chegou a chamar de “diabo”, da justiça social, do acesso à terra contra a sua concentração e da legitimidade das ocupações feitas em função da vida e do trabalho.
Neste contexto, João Pedro deu uma longa entrevista no dia 31/10/2014 ao jornal Il fatto quotidiano, que foi traduzida e reproduzida pelo Instituto Humanistas Unisinos (IHU) dos jesuítas de São Leopoldo. Pelo fato de os meios de comunicação não terem dado muito espaço ao evento de tal relevância (é a primeira vez na história do papado que um papa reuniu-se com os movimentos sociais populares do mundo inteiro tão mal compreendidos e até difamados em suas demandas), replicamos aqui parte da entrevista de João Pedro Stédile.
Vale a pena ler a história a partir do outro lado, daquele dos humilhados e ofendidos, quase nunca escutado pelos que detêm o poder.
Eis a entrevista.
Como nasceu o encontro no Vaticano?
Tivemos a sorte de manter relações com os movimentos sociais da Argentina, amigos de Francisco, com os quais começamos a trabalhar no encontro mundial. Assim, reunimos 100 dirigentes populares de todo o mundo, sem confissões religiosas. A maioria não era católica. Um encontro muito proveitoso.
O senhor é de formação marxista. Qual a sua opinião sobre o papa e a iniciativa vaticana?
O papa deu uma grande contribuição, com um documento irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós. Porque afirmou questões de princípio importantes como a reforma agrária, que não é só um problema econômico e político, mas também moral. De fato, ele condenou a grande propriedade. O importante é a simbologia: em 2.000 anos, nenhum papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos sociais.
O senhor foi um dos promotores dos Fóruns Sociais nascidos em Porto Alegre. Há uma substituição simbólica por parte do Vaticano em relação à esquerda?
Não, acho que Francisco teve a capacidade de se colocar corretamente diante dos grandes problemas do capitalismo atual como a guerra, a ecologia, o trabalho, a alimentação. E ele tem o mérito de ter iniciado um diálogo com os movimentos sociais. Eu não acho que há sobreposição, mas complementaridade. Em todo caso, assumo a autocrítica, como promotor do Fórum Social, do seu esgotamento e da sua incapacidade de criar uma assembleia mundial dos movimentos sociais. Do encontro com Francisco, nascem duas iniciativas: formar um espaço de diálogo permanente com o Vaticano e, independentemente da Igreja, mas aproveitando a reunião de Roma, construir no futuro um espaço internacional dos movimentos do mundo.
Para fazer o quê?
Para combater o capital financeiro, os bancos, as grandes multinacionais. Os “inimigos do povo” são esses. Como diria o papa, esse é o diabo. Mesmo que todos nós vivamos o inferno. Os pontos traçados do encontro de Roma são muito claros: a terra, para que os alimentos não sejam uma mercadoria, mas um direito; o direito de todos os povos de terem um território, seu próprio país, pense-se nos curdos de Kobane os nos palestinos; um teto digno para todos; o trabalho como direito inalienável.
Os Sem-Terra organizam cursos de formação sobre Gramsci e Rosa Luxemburgo. Nenhum problema para trabalhar com o Vaticano?
Nós vivemos uma crise epocal. As ideologias do segundo pós-guerra se aprofundaram. As pessoas não se sentem mais representadas. No entanto, essa crise também oferece oportunidades de mudança, desde que ninguém se apresente com a solução pronta no bolso. Será preciso um processo, um movimento de participação popular. E qualquer pessoa disposta a participar dele deve ser incluída.
Qual é a situação do Movimento dos Sem-Terra hoje?
A nossa ideia, no início, era a de realizar o sonho de todo agricultor do século XX: a terra para todos, bater o latifúndio. Mas o capitalismo mudou, a concentração da terra também significa concentração das tecnologias, da produção, das sementes. É inútil ocupar as terras se, depois, produzirem transgênicos. Não é mais suficiente repartir a terra, mas é preciso uma alimentação para todos, e uma alimentação sadia e de qualidade. Hoje visamos a uma reforma agrária integral, e a nossa luta diz respeito a todos. Por isso, é preciso uma ampla aliança com os operários, os consumidores e também com a Igreja. Somos aliados de qualquer pessoa que deseje a mudança.