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A renúncia que nos humaniza (Mt 16,21-27) [Pe. Adroaldo Palaoro]

Reflexão do Evangelho

Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24)

Se alguém quer me seguir

O tema do seguimento é central em todos os Evangelhos. Trata-se de abandonar qualquer outra maneira de se relacionar com Deus e com os outros, e entrar na dinâmica espiritual que Jesus manifesta em sua vida. É identificar-se com Ele em sua entrega total aos outros, sem buscar para si nada que possa ter resquício de poder e glória.

Jesus é realista. Como todos os mestres espirituais, mostra a senda da vida, que nos permite escapar da confusão e do sofrimento, para reconhecer-nos na nossa verdadeira identidade, espaço de verdade, de liberdade, de unidade e de comunhão.

A oferta de Jesus é um chamado à liberdade: “se alguém quer me seguir”. Caminhar com Ele liberta-nos da autossuficiência estéril e do autocentramento que nos fecha. O seguimento de Jesus pede “descentrar-nos” de nós mesmos para sermos agentes do novo e criadores de futuro.

 

Renuncie a si mesmo

Aqui está o sentido da expressão “renunciar a si mesmo”, erroneamente interpretada como autonegação, automutilação e autodesprezo. Mas não é disso que Jesus fala. A palavra grega “aparneisthai” significa “dizer não, recusar-se”. Aquele que o segue precisa dizer não às tendências egocêntricas do seu interior, que querem fechá-lo em si mesmo, atrofiando e travando o impulso de vida. Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” não significa negar o que somos, mas o que julgamos ser e não somos. “Renunciar a si mesmo” não é negar a vida, nem inclui uma atitude de resignação, autosacrifício ou morte em vida. Jesus era um homem profundamente vital e defensor da vida.

“Renunciar a si mesmo” significa renunciar aquilo que nega a vida. Para ganhar a vida é necessário perdê-la, e “perder a vida” significa “perder o eu”, ou seja, deixar de alimentar o “ego”. Porque, de outro modo, quando vivemos para ele, estamos perdendo a vida, entrando na confusão e no sofrimento. A experiência verdadeira do seguimento de Jesus só é possível se abrirmos mão do nosso ego, se não deixarmos que ele determine a nossa vida; se seguir Jesus serve apenas para aumentar o nosso ego, nos tornamos cegos e nos perdemos.

A mensagem de Jesus não pretende desumanizar-nos, mas conduzir-nos à verdadeira plenitude humana. A vida quer fluir, e quando não flui, ela se atrofia. No entanto, no mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não aceitar-se como criatura, como humano (frágil e limitado).

“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade e a soberba predominem; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus. Viver para o eu é gastar a vida para algo que vai morrer, porque é só uma identidade relativa ou transitória. Descobrimos a vida quando temos acesso à nossa identidade mais profunda, aquela que nunca morrerá. “Perder a sua vida por causa de mim” equivale a reencontrar-nos nessa identidade que compartilhamos com Jesus e com todos os seres. É “perder” o eu, deixar de viver egocentrado e descobrir que somos seres em relação, inseparáveis dos outros.

Para entrar na escola de Jesus, precisamos nos distanciar de toda ambição pessoal, daquela tendência que deseja possuir, dominar, usar tudo para seus próprios fins, que sempre gira em torno de si mesmo e que até tenta instrumentalizar o próprio Deus. Quem vive fixado em seu pequeno eu, na realidade, está interessado apenas na sua autoproteção e na pretensão de “bastar-se a si mesmo”.

“Renunciar a si mesmo” significa a morte do ego ou, com mais propriedade, o final de nossa identificação com ele. O “ego” ou “eu” não é negativo. Mais ainda, teremos que cuidar para que seja um eu psicologicamente integrado. O que torna enganoso e destrutivo é identificar-nos com ele. Brota, então, uma compreensão de que o eu se plenifica na medida em que rompe os laços do seu isolamento, alarga-se em direção a outros, na doação, no serviço e no compromisso solidário. Na linguagem de Inácio de Loyola, a morte do ego significa “sair do seu amor próprio, querer e interesse”.

 

Tome a sua cruz e me siga

O evangelho de hoje nos instiga também a “tomar a cruz”. Da mesma forma, muitos têm interpretado erroneamente a imagem de “carregar a própria cruz”.

“Carregar a sua cruz”, porém, significa acolher aquilo que diariamente cruza o meu caminho, ela é um símbolo para a unidade de todos os polos opostos (dentro de nós atuam o trigo e o joio, o risco e a covardia, o desejo e o medo, o santo e o pecador…).

Tomar a cruz significa aceitar-me com todas as minhas contradições. Tomar a cruz significa abraçar-me com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e as feias, as partes imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente.

Nesse sentido, a cruz deixa de ser um “peso morto”, ou seja, uma cruz vazia, sem sentido, insensata. A cruz como peso morto fecha a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia. Não aponta para o futuro, nem abre um horizonte de vida. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva à cruz da fidelidade ajuda-nos a romper com as cruzes que nos afundam no desespero, nos fracassos, nos traumas das experiências frustrantes.

Portanto, num primeiro nível, a cruz é a consequência de sermos fiéis à nossa verdadeira identidade de seguidores de Jesus. Em outro nível, podemos dizer que ela revela simplesmente o destino do eu. A sabedoria consiste em que nosso eu seja “crucificado” em lugar de ser dono de nossa existência. E o crucificamos na medida em que tomamos distância dele, o esvaziamos de toda soberba e de toda pretensão de poder e prestígio, de modo que não tome conta das rédeas de nossa vida. Ao crucificá-lo, deixamos de viver egocentrados e abrimo-nos à verdade de quem somos nós.

É importante “fazer memória” das cruzes da vida. Elas nos recordam que o dom da vida nos é dado não para que o guardemos e o preservemos, mas para que se consuma e se expanda no serviço aos outros.

 

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