Dado que Lutero não pretendia fundar uma nova Igreja, mas reformar a Igreja existente, o projeto da Reforma deve ser assumido como inacabado. Consequentemente, os esforços ecumênicos orientados para se restabelecer a unidade são de fato um completar-se da própria reforma.
O aniversário, em 2017, do V Centenário da publicação das 95 teses de Lutero, sobre as indulgências – fato em que se reconhece simbolicamente o início do movimento da reforma – estimula uma releitura do evento, que marcou a história do cristianismo e das Igrejas, mas também a dos acontecimentos sociais, políticos e culturais do mundo ocidental.
Lancemos um olhar sobre os aniversários anteriores:
– 1617: a ocorrência do primeiro centenário foi comemorada, em conjunto, por luteranos e reformados, com a intenção de se consolidar a herança da Reforma. Teve um caráter marcadamente polêmico nos confrontos de Roma e da Igreja Católica.
– 1717: os soberanos luteranos quiseram colocar o acento no caráter confessional das Igrejas presentes em seus seu próprios territórios, com a intenção de reavivar o impulso original da Reforma.
– 1817: o evento tomou a forma de uma celebração religiosa nacional. Em 1813, Napoleão havia sido derrotado em Lípsia.
– 1917: início da primeira guerra mundial. Lutero foi celebrado como herói nacional alemão.
Hoje o clima é diferente. Pretende-se colocar em evidência, antes de tudo o significado histórico e social da Reforma e a contribuição de Lutero para o desenvolvimento da cultura europeia da época moderna. Em 2008, iniciou-se o a década de Lutero (Lutherdekade), no mundo alemão, com a intenção de se chamar a atenção para a contribuição da Reforma em temas como a formação, a liberdade, a tolerância, a música, a política, as imagens e a Bíblia.
Há iniciativas que colocam em evidência o significado religioso e os temas propriamente teológicos da Reforma com a intenção de se preparar um comentário histórico-teológico das 95 teses sobre as indulgências com a participação de estudiosos luteranos e católicos.
Não faltam iniciativas, que entrevem o aniversário como ocasião para se reafirmar a identidade protestante, atualmente esmaecida e diluída.
Como, porém, numa época ecumênica, celebrar o V centenário da Reforma?
A esta interrogação, deu uma resposta a Comissão Internacional Luterano-católica para a Unidade, formada pela Federação Luterana Mundial e pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. O texto foi apresentado a 17 de junho de 2013, em Genebra na sede da Federação Luterana mundial e leva como título: Do conflito à comunhão. A comemoração conjunta luterano-católica da Reforma em 2017.
Algumas anotações acerca do texto
O documento relembra, além do desenvolvimento do movimento ecumênico o afirmar-se de um horizonte global e a presença de processos difusos de secularização.
O documento constata que em relação às Igrejas do sul do mundo deve ser repensado o significado de um evento histórico europeu, percebido pela maioria como distante e estranho, mas apesar disso, decisivo para a vida das comunidades surgidas através das missões protestantes.
O documento é explícito: o que aconteceu no passado não pode ser mudado, mas pode, entretanto mudar, com o passar do tempo, o que é relembrado do passado e de que maneira é relembrado. No documento, faz-se a opção precisamente de se oferecer uma narrativa sintética e, por isso mesmo, muito útil, dos fatos da Reforma. Segue-se uma exposição das questões teológicas fundamentais, partindo-se da percepção de que o conhecimento que se têm de tais elementos é o mais das vezes aproximativo ou totalmente inexistente.
Essa é uma apresentação de grande utilidade, porque os fatos da Reforma são expostos por católicos e luteranos, como fruto de um trabalho conjunto. Não se trata de “reescrever” a história, mas de indicar um critério hermenêutico que coloque os fatos e as controvérsias do século XVI, num contexto histórico mais amplo.
Há uma ideia de fundo: não celebramos a separação. Não festejamos a divisão da Igreja do Ocidente. Tomamos consciência de que a polêmica confessional foi muitas vezes conduzida com métodos que contradiziam o respeito à verdade e à justiça em relação ao interlocutor com o qual nos confrontávamos.
Concluo essa breve exposição, reenviando à leitura integral do documento, com a observação do teólogo luterano Wolfhart Pannenberg, que sempre me impressionou tanto por sua teologia quanto por sua espiritualidade (vi-o com as lágrimas nos olhos na catedral de Santiago de Compostela): dado que Lutero não pretendia fundar uma nova Igreja, mas reformar a Igreja existente, o projeto da Reforma deve ser assumido como inacabado. Consequentemente, os esforços ecumênicos orientados para se restabelecer a unidade são de fato um completar-se da própria reforma.
Completá-la é uma tarefa de católicos e luteranos.
FRANCESCO STRAZZARI (Jornalista do Il Regno)