1.1. O capítulo 17 traz uma oração de Jesus que, às vezes, é chamada de “Oração Sacerdotal”. Talvez seja melhor chamá-la de “Testamento de Jesus”. Ela é o final de uma longa e profunda reflexão de Jesus, iniciada no capítulo 15, sobre a sua missão no mundo. As comunidades conservaram estas reflexões para poderem entender melhor o momento difícil por que elas mesmas passavam: tribulação, abandono dúvidas, perseguição. A reflexão termina com uma oração de Jesus pelas comunidades (Jo 17,1-26). Nela transparecem os sentimentos e as preocupações que, conforme o evangelista, estavam em Jesus no momento de sair deste mundo. É com esta preocupação que Jesus está agora diante do Pai, intercedendo por nós. Por isso é o testamento de Jesus.
1.2. O capítulo 17 é um texto diferente. É mais de amizade do que de raciocínio. Antes de ser analisado pela cabeça, deve ser meditado e acolhido no coração. Aqui vale o que dissemos anteriormente a respeito do discurso do Pão da Vida: “É um texto não tanto para ser discutido, e sim para ser meditado e ruminado. Não se preocupe, se não entender tudo. É um texto que exige toda uma vida para meditá-lo e aprofundá-
lo. Um texto assim devemos ler, meditar, reler, repetir, ruminar, como se faz com uma bala gostosa na boca. Vai virando e virando, até se gastar.”
2. Comentando
2.1. João 17,1-3: Chegou a hora!
“Pai, chegou a hora!” É a hora longamente esperada (Jo 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 16,32). É o momento da glorificação que se fará através da morte e ressurreição. Chegando ao fim da sua missão, Jesus olha para trás e faz uma revisão. Nesta prece, ele expressa o sentimento mais íntimo do seu coração e a sua descoberta mais profunda: a presença do Pai em sua vida.
2.2. João 17,4-8: Pai, reconheceram que vim de Ti!
Revendo sua vida, Jesus se vê a si mesmo como a manifestação do Pai para os amigos e amigas que o Pai lhe deu. Jesus não viveu para si. Viveu para que todos pudessem ter um lampejo da bondade e do amor que estão encerrados no Nome de Deus que é Abba, Pai.
2.3. João 17,9-11a: Tudo que é meu é teu, tudo que é teu é meu!
No momento de deixar o mundo, Jesus expõe ao Pai a sua preocupação e reza pelos amigos que deixa para trás. Eles continuam no mundo, mas não são do mundo. São de Jesus, são de Deus, são sinais de Deus e de Jesus neste mundo. Jesus está preocupado com as pessoas que ficam, e reza por elas.
2.4. João 17, 11b-12: Guarda-os em teu nome!
Jesus transforma a sua preocupação em prece: “Guarda-os em teu nome, o nome que tu me deste, para que sejam um como nós!” Tudo que Jesus fez foi em nome do próprio Deus. Pois ele é a manifestação de Deus. É em torno deste nome que deve ser construída a unidade. Jesus quer a unidade das comunidades, para que possam resistir no mundo que as odeia e persegue. Povo unido ao redor do nome de Jesus jamais será vencido!
2.5. João 17,13-16: Que tenham a plenitude da minha alegria
Jesus está se despedindo. Vai partir em breve. Os discípulos e as discípulas ficam no mundo, vão ser perseguidos e terão aflições. Por isso estão tristes. Jesus quer que tenham alegria plena. Eles vão ter que continuar no mundo sem fazer parte do mundo. Isso significa, bem concretamente, viver no sistema do Império, seja ele romano ou neoliberal, sem se deixar contaminar por ele. Devem viver com Jesus na contramão do mundo.
2.6. João 17,17-19: Como tu me enviaste, eu os envio ao mundo
Jesus pede que sejam consagrados na verdade, isto é, que sejam capazes de dedicar toda a sua vida para testemunhar as convicções que têm a respeito de Jesus e de Deus Pai. Jesus se santificou na medida em que viveu revelando o Pai. Ele pede que os discípulos e as discípulas entrem no mesmo processo de santificação. A missão deles é a mesma de Jesus. Eles se santificam na mesma medida em que, vivendo o amor, revelam Jesus e o Pai.
2.7. João 17,20-23: Para que o mundo creia que tu me enviaste
Aqui transparece a grande preocupação de Jesus pela união que deve existir nas comunidades. Unidade não significa uniformidade, e sim permanecer no amor, apesar de todas as dificuldades e conflitos. Amor que une ao ponto de fazer de todos uma profunda unidade, como aquela que existe entre Jesus e o Pai. A unidade no amor que se revela na Trindade é o modelo para as comunidades. Por isso, é o amor entre as pessoas das comunidades que revela ao mundo a mensagem mais profunda de Jesus.
2.8. João 17,24-26: Que o amor com que me amaste esteja neles
Jesus não quer ficar só. A felicidade dele é que todos nós estejamos com ele. Jesus quer que os discípulos e as discípulas tenham a mesma experiência que ele teve do Pai, que conheçam o Pai como ele o conheceu. Conhecer significa experimentar a presença de Deus na convivência amorosa com as pessoas na comunidade.
3. Alargando
Unidade e Trindade no Evangelho de João
O Evangelho de João nos ajuda muito na compreensão do mistério da Trindade, a comunhão entre as três pessoas divinas: o Pai, o Filho e o Espírito. Dos quatro evangelhos, João é o que mais acentua a profunda unidade entre o Pai e o Filho.
Vemos pelo texto do evangelho (Jo 17,6-8) que a missão do Filho é a suprema manifestação do amor do Pai. É esta unidade entre Pai e Filho que faz Jesus proclamar: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30). Entre ele e o Pai existe uma unidade tão intensa que quem vê o rosto de um vê também o do outro. É cumprindo esta missão recebida do Pai que Jesus revela o Espírito. “O Espírito da Verdade vem de junto do Pai” (Jo 15,26). A pedido do Filho (Jo 14,16), o Pai o envia a cada um de nós para que permaneça conosco, animando-nos e fortalecendo-nos. O Espírito também nos vem do Filho (Jo 16,7-8). Assim, o Espírito da Verdade, que caminha conosco, é a comunicação da profunda unidade que existe entre o Pai e o Filho (Jo 15,26-27). O Espírito não pode comunicar outra verdade que não seja a Verdade do Filho. Tudo o que se relaciona com o mistério do Filho, o Espírito nos faz conhecer (Jo 16,13-14).
Esta experiência da unidade em Deus foi muito forte nas comunidades do Discípulo Amado. O amor que une as pessoas divinas, Pai e Filho e Espírito, nos permite experimentar Deus pela união com as pessoas numa comunidade de amor. Assim também era a proposta da comunidade, onde o amor deveria ser o sinal da presença de Deus no meio da comunidade (Jo 13,34-35). E este amor constrói a unidade dentro da comunidade (Jo 17,21). Eles olhavam para a unidade em Deus para poder entender a unidade entre eles.
A palavra mundo é uma das mais frequentes no Evangelho de João. Aparece 78 vezes. Por isso ela tem vários significados. Em primeiro lugar, mundo pode significar a terra, o espaço habitado pelos seres humanos (Jo 11,9; 21,25) ou mesmo o universo criado (Jo 17,5.24). Mundo também pode significar as pessoas que habitam esta terra, a humanidade toda (Jo 1,9; 3,16; 4,42; 6,14; 8,12). Pode significar ainda um grande grupo, um grupo numeroso de pessoas, no sentido em que falamos “todo o mundo” (Jo 12,19; 14,27).
Mas, principalmente, mundo no Quarto Evangelho significa aquela parte da humanidade que se opõe a Jesus e à sua mensagem. Aqui a palavra mundo toma o sentido de “adversários” ou “opositores” (Jo 7,4.7; 8,23.26; 9,39; 12,25). Este mundo, que é violentamente contra a prática libertadora de Jesus, é chefiado pelo Adversário ou Satã, também chamado de “príncipe deste mundo” (Jo 14,30; 16,11). Ele representa o Império Romano e, ao mesmo tempo, os líderes dos judeus que expulsam os seguidores e as seguidoras de Jesus. Este mundo persegue e mata as comunidades, trazendo tribulações aos fiéis (Jo 16,33). Jesus as libertará, vencendo o príncipe deste mundo (Jo 12,31).