O tempo de Quaresma vem após o carnaval e suas cinzas, e antecede a Páscoa como uma profunda experiência de preparo para a festa da morte/ressurreição cristã. No ciclo litúrgico do tempo Cristão, esse é o momento mais humano. Pouco antes da Quaresma, na valia ou na folia da carne, mulheres e homens se vêem vislumbrados com a força libídica – o desejo vital que fortalece a todos na luta pela sobrevivência, pela agregação; impulso que leva o humano à ambígua inclinação, tanto para o ato da morte de sangue quanto para o saneamento das vontades abdominais; a força coletiva pela busca do alimento e pela agregação altruísta; a festa do desejo que enaltece a fertilidade. Após o carnaval, o dia de Cinzas e os quarenta dias de Quaresma, a Páscoa vem a nós como a festividade em que a humanidade cristã exercita a capacidade de raciocínio abstrato ao mundo perverso e doloroso – tal evento nos habilita auma celebração da compreensão significativa da vida plena, a celebração pela luta a favor da superação das imanentes limitações humanas, a celebração da esperança sublime de redenção, de ressurreição–,ainda que tal capacidade esteja conectada às fontes vitais do corpo!
Os evangelhos fazem parte de uma experiência religiosa que o sociólogo alemão Max Weber conceituou descuidadamente de religião universal. De fato, não há religião Universal, pois todas elas se estofam numa trajetória simbólica, num circuito textual escrito ou ágrafo, pois o cristianismo tem seu estofo paratextual, polireligioso e mutiétnico. Não é universal, porém, não deixa de ser experimentado num contexto gigantográfico de culturas e humanidades.
O Evangelho de Mateus provavelmente foi redigido num contexto palestino – terra de cruzamentos comerciais, edificações greco-romanas, imaginários diversos. O redator, próximo à Jerusalém, podia observar como a diversidade cultural e religiosa era marcante. A Religião Monoteísta do Templo de Jerusalém agregavadiversidades de expectativas políticas e religiosas. Muitos lutavam pela restauração do Templo, e nessa luta, muitas pessoas pensavam em Davi, outras articulavam batalhas contra a casta sacerdotal e aristocrática regente – os saduceus e os fariseus. Outros, insatisfeitos com toda a realidade jerusaleniana, pregavam a destruição do Templo e da Casa Real de Herodes, além de praticarem o batismo para a redenção. Com o sentimento de caducidade do mundo, a esperança por um messias cada vez mais ganhava voz.
Nessa conjuntura de muitos protestos, a vida da maioria se mostrava sufocada, encapsulada, deteriorada. Associando os gêneros do drama trágico grego, do messianismo contra histórico do hebraísmo apiru-palestinense(memórias de escravos libertos) e das sabedoriasdeste oriente, Mateus reconstruiu a vida de Jesus, o Cristo: o Senhor (Kyrios) encarnado;o Emanu-Elatento e misericordioso para com o humano; o Deus único e supremo, simpático para com as dores e para com as desesperanças de mulheres e homens, de crianças e daqueles que faziam parte do terceiro gênero silenciado (os eunucos). Mateus redigia seu Evangelho atento aos ricos e aos miseráveis, àqueles que não sabiam mais o que era o viver abundante, àqueles que não tinham mais esperança.
O momento da Quaresma é o da rememorização e o da recepção do texto bíblico no tempo desencantado. Não há cristianismo sem uma experiência profunda do texto dramático, do texto que anuncia o Evangelho do Deus vivo e libertador. Não há como ser cristão e, ao mesmo tempo, ser duro de alma. Não há como ser cristão com riqueza monetária no coração ou com a miséria da vida sendo o rumo dos chãos. Quaresma é a memória do drama que faz com que o Cristianismo não seja um ato de opressão ou castração, mas de libertação, de amor e de redenção.
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e meu fardo é leve.” (Mt. 11.28-30).