Jera Guarani é uma liderança indígena que estudou por algum tempo em São Paulo, mas nunca deixou de viver em sua comunidade. Hoje vive na aldeia Tenonde Porã, ao sul da cidade. É diretora da escola estadual indígena Gwyra Pepó, tem 34 anos e é parte do conselho de lideranças da aldeia. No relato de sua experiência que fez durante o Festival Percurso, no contexto da “aula magna das expressões tradicionais e periféricas”, refletiu sobre o presente de seu povo: “Hoje quase não vivemos, sobrevivemos. Não temos terra nem onde pescar.”
Jera narra que nas casas Guarani ao sul de uma das maiores metrópoles do mundo, eles ainda cozinham com fogo à lenha e ali desfrutam de prazeres simples como andar descalços. Ainda que fale bem o português, reafirma que nunca quis abandonar seu povo. “Eu trabalho na educação e com tudo o que tem a ver com o fortalecimento cultural. De fato, a situação de que sou parte da liderança não é uma coisa comum. No estado de São Paulo há mais de 40 aldeias Guarani Mbya e em 2008 começamos a trabalhar nesse sentido. Trabalhamos tanto os estímulos que vêm de fora, pensando como criar projetos e como trabalhar com governos, quanto os problemas internos da aldeia. As decisões são tomadas com o cacique e os demais líderes, e também a partir do Conselho da Aldeia.”
A partir do consenso comunitário, Jera foi a primeira mulher no grupo que teve a oportunidade de trabalhar como liderança com todas as responsabilidades que têm geralmente um homem neste contexto. “De fato, a situação de que sou parte da liderança não é uma coisa comum.”
Você teve que superar muitos preconceitos para conseguir uma boa interação com os homens líderes da sua comunidade?
Sim, eu sinto que no início sofremos uma forte estranheza principalmente das próprias mulheres. Daí surgiam esses questionamentos: “mas como uma mulher vai ficar com os homens e ir com eles para lá e para cá?” Em seguida, sinto que elas mesmas se sentiram mais seguras tendo uma mulher na liderança. Enfim, eu acho que nós, Guarani Mbya e a nossa organização, a Comissão Guarani Yvyrupa, estamos fazendo história com isto de ter mulheres à frente. Está caminhando bem.
Como é viver na cidade de São Paulo sem falar português, em uma sociedade que parece muito atual, moderna e inclusiva mas que de fato não é tanto assim?
As comunidades Guarani Mbya se mantém muito fortes. Fomos um dos primeiros povos indígenas a ter contato com a invasão europeia. Mesmo assim, mantemos nossas tradições muito arraigadas e ainda hoje há pessoas que podem viver em um mundo muito Guarani. Estamos cercados por coisas das cidades: TV, eletricidade, internet. Em suma: o mundo tecnológico está muito impregnado na aldeia. Ter pessoas que não falam português acaba fortalecendo muito a cultura.
Quanta informação chega sobre a Copa?
Muitíssima, acabamos de fazer um protesto, junto com alguns amigos que estão aqui. Uma manifestação na abertura da Copa em que levantamos a bandeira da “demarcação já”.
APROPRIAÇÃO DO EVENTO E PRONUNCIAMENTO AO MUNDO
A abertura da Copa do Mundo foi um espaço de produção de sentidos e de disputa por valores predominantes. Cenário no qual apareceram (e aparecem durante todo o transcurso do evento) as fissuras.
Em meio às danças coreografas por uma artista belga se fez presente então a subalternidade. Esta condição de desigualdade diante da imposição de ideias hegemônicas que levam ao extremo a desigualdade durante este mega evento.
“Demarcação já” dizia a bandeira vermelha que tomou a cena de assalto. Uma ocupação da Copa oficial em um estádio a que tem acesso apenas uma elite brasileira e internacional. Com uma demanda urgente: a demarcação dos territórios que pertencem aos povos indígenas, uma regulamentação que permita que os ditos direitos sejam efetivamente cumpridos.
“Eu não podia entrar com a bandeira, mas eu queria, nosso povo quer e precisa. Coloquei a bandeira na cueca e só tirei quando estava no meio do campo de jogo. Porque nós vivemos aqui há muito tempo, mais de mil anos, e queremos nossa terra demarcada”, declarou Wera Jeguaka Mirĩ.