A bancada ruralista se irritou com as conclusões da missão da ONU. Ao fim da visita, em 17 de março deste ano, Victoria afirmou que o governo brasileiro não havia observado as recomendações – sobretudo no que se refere às demarcações – e concluiu, em relatório parcial apresentado durante entrevista coletiva em Brasília, que, ao contrário: os direitos indígenas no Brasil corriam sério risco de serem desfeitos por força de interesses privados sobre os territórios tradicionais reivindicados pelos povos país afora. Para Victoria, a autodeterminação dos povos indígenas não vem sendo respeitada pelo governo brasileiro. A relatora deverá apresentar um relatório definitivo, contendo novas recomendações ao país, no próximo mês de setembro.
Colatto argumenta, apresentando desconhecimento sobre as prerrogativas de trabalho das relatorias da ONU e seu funcionamento, que a missão deveria ter sido acompanhada de perto pelo governo brasileiro. Em tom de denúncia, o parlamentar ruralista apontou o que denominou como "passado onguista" da relatora, sem nenhuma atenção às funções, perfis e objetivos dos mandatos da Relatoria Especial da ONU. "Essa relatora veio em um momento relativamente crítico do nosso País e no calor dos trabalhos desta CPI, sugerindo uma forma de intervenção nas questões internas do povo e do Estado brasileiros, inclusive traçando críticas à atuação do Governo na demarcação de Terras Indígenas (SIC)", justificou Colatto no requerimento.
A iniciativa de Colatto não é o primeiro ataque à missão da ONU no país. Enquanto estava na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia, a relatora tomou conhecimento de uma declaração da deputada estadual ruralista Mara Caseiro (PMB/MS), então presidente da CPI que investigou a atuação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Mato Grosso do Sul, em que a parlamentar questionava o fato da relatora ser parcial na defesa dos povos indígenas. A ruralista também criticou o envolvimento de Victoria com organizações internacionais de promoção dos direitos humanos.
Em resposta, Victoria disse: "Sou parcial mesmo. Isso é o que pede o mandato a mim entregue pela ONU na Relatoria Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Minha função é verificar se os princípios das Nações Unidas para essas populações são observados pelo governo brasileiro; tecer críticas e fazer recomendações. Então sou parcial, esse é o papel da Relatoria Especial". Conforme o cacique Ramon Tupinambá, a missão da ONU é essencial para que os povos indígenas tenham seus direitos respeitados: "São normas internacionais que o governo brasileiro desrespeita, além da Constituição. Então é importante que na ONU se saiba o que acontece aqui. Os assassinatos, emboscadas, criminalizações e a falta de demarcação".
O Brasil e a ONU
O Brasil é país membro fundador da ONU. De acordo com a Fundação Alexandre Gusmão, entidade vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, "as Nações Unidas estão presentes no encaminhamento dos macroproblemas internacionais de natureza política, militar, econômica, social, ambiental e jurídica. A ONU funciona como instância de mediação ou interveniência em situações críticas, isto é, altamente conflituosas (…) Em ambos os casos, desempenha inequívoco papel de legitimação e impõe sanções aos que rompem com os seus princípios".
Durante o Ano Internacional dos Povos Indígenas (1993), a ONU publicou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Nela estão as diretrizes internacionais a serem seguidas pelos países membros das Nações Unidas quanto ao trato do Estado Nacional a essas populações, envolvendo direitos à terra, autodeterminação e direitos humanos. "Os povos indígenas têm o direito ao pleno e efetivo desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos na Carta das Nações Unidas e outros instrumentos internacionais de direitos humanos", diz a Declaração.
A ONU, com isso, possui instrumentos próprios para verificar se os países membros estão adequados aos princípios norteadores das Nações Unidas, determinados por declarações, cartas, recomendações e normativas. A gestão de Victoria Tauli-Corpuz na Relatoria Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, portanto, tem a função de acompanhar a execução da política internacional das Nações Unidas nos países membros; verificar, inclusive, se recomendações realizadas por gestões anteriores da Relatoria Especial foram atendidas pelos governos. Em curtas palavras, o trabalho envolve fiscalização e controle social da política internacional.
A missão da Relatoria Especial da ONU
Victoria Tauli-Corpuz esteve no Brasil, liderando uma missão internacional da ONU, durante o mês de março deste ano. Visitou terras indígenas em situação de conflito fundiário, símbolos da falta de garantia de direitos humanos e sociais destes povos, no Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará – neste último caso, Victoria esteve com populações indígenas impactadas pelas obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Estes estados e terras indígenas tinham sido visitados pelo predecessor de Victoria na Relatoria Especial da ONU sobre Direitos Indígenas, James Anaya, em 2008. O objetivo da visita de Victoria foi o de verificar se as recomendações de Anaya tinham sido atendidas pelo governo brasileiro e fazer outras, conforme o que se constatasse durante o roteiro de viagem.
"Em termos gerais, minha primeira impressão após esta visita é de que o Brasil possui uma série de disposições constitucionais exemplares em relação aos direitos dos povos indígenas, e que no passado o país deixou patente sua liderança mundial no que se refere à demarcação dos territórios indígenas”, afirmou Victoria Tauli-Corpuz no dia 17 de março – durante coletiva de imprensa em que a relatora apresentou as impressões de sua visita.
Nos dias em que percorreu as terras indígenas, Victoria e sua delegação, composta por assessores, jornalistas e agente de segurança da ONU, foram acompanhadas por escolta da Polícia Federal. A relatora cumpriu agenda também com o governo federal, nas Comissões de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e Senado federais e se reuniu com a diretoria da Federação de Agricultores do Mato Grosso do Sul (Famasul), quando ouviu as reclamações dos ruralistas sobre retomadas de terras pelos povos indígenas. “Nos oito anos que se seguiram à visita de meu predecessor, […] houve retrocessos extremamente preocupantes na proteção dos direitos dos povos indígenas”, ressaltou a relatora, no relatório resumido que foi entregue à imprensa. “Os riscos enfrentados pelos povos indígenas estão mais presentes do que nunca desde a adoção da Constituição de 1988”.