São Luiz era um desses projetos que fazem lembrar a frase que o físico austríaco Wolfgang Pauli dizia toda vez que lia um trabalho científico muito ruim: “Isto aqui não está certo. Não está nem sequer errado”. A usina, projetada para gerar 8.040 megawatts de eletricidade, entregaria na prática metade disso como energia “firme”. Seu reservatório alagaria 722 quilômetros quadrados de floresta (meia cidade de São Paulo) numa das regiões mais preservadas da Amazônia, inclusive parte do Parque Nacional da Amazônia e três aldeias da terra indígena Sawré Muybu, dos índios munduruku. Custaria R$ 30 bilhões, o mesmo que Belo Monte. Serviria de cabeça-de-ponte para a instalação de mais oito ou nove usinas, que consolidariam a grande expansão para o Norte do sistema hidrelétrico brasileiro.
O “complexo Tapajós” fez a então presidente Dilma Rousseff determinar por Medida Provisória a redução de sete unidades de conservação federais. Áreas protegidas só podem ser reduzidas por lei, e a manobra de Dilma foi contestada no STF pelo Ministério Público. O complexo de barragens tem o potencial de ampliar em 25% o desmatamento na bacia do Tapajós – o último grande afluente do Amazonas ainda sem hidrelétricas.
Mesmo assim, até 2014 o governo federal dava São Luiz do Tapajós (SLuT) como fava contada. Antes mesmo de o estudo de impacto ambiental ser iniciado e de saber se conseguiria a permissão ambiental, o governo já tinha o calendário de licenciamento pronto e marcava o leilão da usina para 2014 (adiado para 2015 e 2016). A máquina de relações-públicas da usina já vinha rodando, com a contratação de uma agência especializada e a criação de um esquema de persuasão das comunidades locais, o chamado Diálogo Tapajós.
Nem mesmo a informação de que a hidrelétrica poderia perder um terço de sua capacidade já no meio do século devido aos efeitos do aquecimento global sobre a vazão do Tapajós fez o Planalto recuar: ao contrário, a decisão foi de atirar no mensageiro e tentar enterrar os estudos encomendados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos que vaticinavam o problema. São Luiz se encaminhava para ter o mesmo destino de Belo Monte, das usinas do Madeira, de Teles Pires e de todas as demais obras malucas na Amazônia: era inviável ambientalmente e economicamente, mas seria feita de qualquer forma – só porque o governo assim queria.
Uma sucessão de acontecimentos a partir do final de 2014 virou do avesso o desfecho do drama tapajoara. Por ordem de importância, são eles: Sérgio Moro, a recessão, o impeachment de Dilma Rousseff e a adesão do Greenpeace ao movimento de resistência à usina iniciado na década passada pelos munduruku.
A Operação Lava-Jato foi provavelmente o fator desencadeador do freio ao projeto. Em novembro de 2014, o juiz Moro mandou prender executivos de cinco empreiteiras. Entre elas a Camargo Corrêa, que fez os estudos de potencial elétrico da bacia do Tapajós e era cotada para abocanhar São Luiz. Não apenas o governo se viu sem interlocutor para tocar a obra, como assistiu ao aliado Dalton Avancini, presidente da Camargo, transformar-se em delator: para reduzir seu tempo de cana, o empreiteiro alcaguetou o esquema de propina no setor elétrico para o PMDB, partido que domina a eletrocracia brasileira. Ficava explícito que obras do tipo têm uma função muito menos nobre do que gerar energia.
Na mesma época, também começava a ficar claro o tamanho do tombo imposto à economia brasileira pelos quatro anos de governo Dilma. O país entrava em “recessão técnica”, que em 2015 viraria a maior recessão da história. O argumento central do governo para justificar grandes hidrelétricas na Amazônia – o país precisaria de energia para sustentar seu crescimento – caía por terra: começou a sobrar eletricidade no Brasil.
Numa conta feita pelo engenheiro Ricardo Baitelo, coordenador de Clima e Energia do Greenpeace, a sobrecapacidade do sistema hoje está em torno de 3.000 megawatts. Ao mesmo tempo, projetos de energia eólica, bem mais rápidos de construir e simples de licenciar, têm capacidade hoje de entregar os mesmos 3.000 megawatts por ano. Contando a sobra de energia, em dois anos consecutivos de contratação de eólicas seria possível cobrir 9.000 megawatts, mais do que a capacidade instalada de São Luiz. “E a energia estaria integralmente no sistema no final do quinto ano, ou seja, bem antes do que o projeto de São Luiz prometia”, acrescenta Baitelo.
O impeachment de Dilma Rousseff sedimentou esse contexto ao eliminar do tabuleiro o principal fator político de apoio às hidrelétricas na Amazônia. Ao perceber que seu destino estava selado no Congresso, Dilma jogou na mesa uma cartada surpreendente: autorizou a demarcação da terra munduruku, o impedimento constitucional mais óbvio ao projeto de SLuT.
Os munduruku estão no caminho de uma série de empreendimentos na bacia do Tapajós, e já haviam perdido a parada em pelo menos um caso – quando a usina de São Manoel, no rio Teles Pires (um dos formadores do Tapajós) passou por cima de uma cachoeira sagrada para aquele povo. A terra Sawré Muybu vinha tendo sua demarcação empurrada com a barriga, justamente porque o artigo 231 da Constituição proíbe alagar terras indígenas. Se aquele território fosse reconhecido formalmente, a hidrelétrica viraria uma violação constitucional óbvia, que o Planalto precisaria rebolar para contornar. Segundo explica Maurício Guetta, advogado do Instituto Socioambiental, é um caso diferente do de Belo Monte, onde terras indígenas seriam impactadas da maneira oposta – ficariam sem água, algo que a Constituição não impede.
Os munduruku, com apoio do Ministério Público do Pará, da Igreja e de ribeirinhos do Tapajós, vêm promovendo uma resistência organizada à usina pelo menos desde 2009. Naquele ano, mandaram uma carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva com desenhos nada sutis do que pretendiam fazer com os brancos caso o governo levasse a ideia de SLuT adiante.
Não brinque com os munduruku
Mais recentemente, organizaram um emocionante processo de autodemarcação de sua terra, espalhando em seus limites placas que imitam as que a Funai coloca em terras oficialmente demarcadas.
No ano passado, os índios ganharam um apoio de peso: o Greenpeace, ONG com maior poder de mobilização do planeta, transformou São Luiz em campanha prioritária global e, neste ano, botou sua máquina de comunicação para funcionar a pleno vapor no Tapajós – algo que se abstivera de fazer em Belo Monte. Os munduruku caíram na boca do povo e na imprensa internacional. Isso ampliou o custo político para o governo interino de Michel Temer de levar adiante o calendário da obra e anular a demarcação proposta por Dilma, ainda mais quando o ministro do Meio Ambiente de Temer, Sarney Filho, se opõe à usina.
Nesse contexto, um parecer da Funai contra a constitucionalidade da obra e uma série de recomendações do Ministério Público Federal (instâncias que o governo não hesitou em ignorar olimpicamente no caso de Belo Monte) puderam ser acatados pelo Ibama sem retaliação nem degola, como ocorreu no passado quando o órgão ambiental ousou peitar a eletrocracia estatal.
São Luiz parece enfim encaminhada para o lugar que sempre lhe coube na história: o céu das ideias ruins. Mas Maurício Guetta, do Isa, alerta que a guerra ainda não está de todo ganha: a demarcação da Sawré Muybu está na fase de contestações – e não faltam contestadores. Além disso, nenhuma palavra foi dita até agora sobre as outras usinas do Complexo Tapajós, como Jatobá, Jamanxim, Jardim do Ouro e Cachoeira dos Patos, a serem implantadas em áreas preservadas e muito biodiversas, e Chacorão, que afetaria uma terra munduruku já demarcada, a Saí Cinza.
O prego no caixão foi batido, mas no Brasil nunca se deve subestimar a capacidade de retorno de alguns zumbis.