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Juiz decreta ‘inexistência’ de povos indígenas que denunciaram presença de madeireiros em suas terras no Pará

Juiz decreta 'inexistência' de povos indígenas que denunciaram presença de madeireiros em suas terras no Pará
“Dói, como se fossem rasgando o nosso ventre”. Apolonildo de Souza Costa, mais conhecido como Rosí, pousa a mão sobre a barriga para explicar o que sente ao ver barcos madeireiros escoando pilhas de troncos pelos rios que banham a Terra Indígena Maró (veja o mapa), noroeste do Pará. Os outros 239 indígenas Borari e Arapiuns que vivem nesta terra também sentem, no estômago, os impactos do desmatamento: a fome é o primeiro efeito da degradação ambiental, consequência da fuga da caça e da dificuldade em coletar frutas.

Como muitos representantes de povos que foram perseguidos e catequizados pelas missões jesuítas na região, Rosí não tem “nome de índio”. A colonização ensinou seus antepassados a esconder a identidade. Mas o semblante altivo denuncia novos tempos e Rosí enche o peito para se apresentar como “guerreiro-vigilante Borari”. As evidências formais sobre a identidade dos indígenas habitantes da terra Maró somam 250 páginas de estudo de identificação feito pela Funai (Fundação Nacional do Índio). A mais contundente delas, porém, não está no papel, mas na ousada ação dos “guerreiros-vigilantes”.

O grupo se arrisca para combater o desmatamento dentro de sua terra. Uma vez por mês, deixam suas casas e passam dias vasculhando os 42 mil hectares da terra Maró em busca dos invasores. Quando os encontram, geralmente instalados em serrarias, os vigilantes acionam a Funai e ficam no local até uma equipe de fiscalização chegar.

Os funcionários das madeireiras não costumam reagir com violência. A reação vem depois. O segundo-cacique Odair José Souza Alves, conhecido como Dadá Borari, já recebeu ofertas de dinheiro, ameaças, perseguições e sofreu um violento atentado. “Primeiro foi uma oferta no valor de 30 mil. O madeireiro abriu a pasta na minha frente e mostrou o dinheiro”, diz Dadá.

Depois, vieram as ameaças. Até que a violência subiu de tom e, em junho de 2007, Dadá foi sequestrado na cidade de Santarém (sede do município onde fica a terra Maró). Ficou sete horas em cativeiro. “Fui amarrado em duas árvores, pernas e braços, e fui apanhando”, lembra.  Um inquérito foi aberto sobre o caso, mas os culpados nunca foram encontrados. Como Dadá continuou a receber ameaças, foi incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Há sete anos convive com a escolta de policiais militares. Quando fala da violência, cresce a convicção na voz do cacique. “Posso estar no último suspiro, mas não vou embora daqui. Ameaça pra mim é fortalecimento”.

Nos últimos anos, o grupo de vigilantes só aumenta a ofensiva contra os madeireiros. Aprenderam, com a Funai, a manusear o GPS e colher elementos para relatórios de fiscalização. Assim, documentam e encaminham denúncias formais sobre tudo que encontram dentro da terra. A pressão exercida pelo grupo foi tanta que despertou uma delicada disputa jurídica entre entes federais e estaduais.

Com as evidências colhidas pelos Borari e Arapiuns, as entidades de apoio aos indígenas descobriram que Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará autorizou a exploração da floresta dentro da Terra Indígena. No mapa abaixo, levantado pela ONG Fase Amazônia (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), é possível ver ao menos dez áreas dentro da terra indígena onde o governo do estado autorizou o registro de Cadastros Ambientais Rurais.

Acionado pelos indígenas, o Ibama identificou e embargou Projetos de Manejo Florestal dentro da área. Ou seja, madeira que saía da terra indígena com selo de certificada. Em alguns casos, as madeireiras receberam a autorização como permuta após terem sido retiradas de outra terra indígena ao sul do estado. A legalidade dessas autorizações é questionada pelo Ministério Público Federal do Pará, que moveu ação pedindo a retirada das serrarias do local.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará respondeu que a concessão só ocorreu por que o processo de demarcação ainda não foi concluído: “A referida área está somente delimitada e não demarcada, o que oficializaria o local como terra indígena. Em área indígena consolidada não há Cadastro Ambiental Rural”. A demarcação da Terra Indígena Maró anda a passos lentos no Ministério da Justiça desde 2011, quando foi publicado o relatório de identificação e delimitação. Segundo a Funai, o processo está “em fase do contraditório administrativo em análise pelo Ministério da Justiça”.

Em meio à disputa, os Borari e Arapiuns municiaram o Ibama e o MPF para que realizassem uma grande fiscalização no território. Em novembro de 2014, os fiscais interditaram as serrarias e embargaram os Planos de Manejo Florestais em execução na área.

Duas semanas depois, no que foi interpretado como uma resposta à operação, o juiz federal de Santarém Airton Portela soltou uma controversa sentença: ele determinou a “inexistência” da identidade Borari e Arapiuns.  Usando termos como “índios falsos” e “supostos rituais”, o juiz questionou o laudo antropológico da Funai para determinar que o órgão deveria suspender o processo de demarcação, liberando a exploração da floresta dentro da terra indígena.

A ação também foi citada como justificativa pela Secretaria do Meio Ambiente quando questionada sobre as autorizações de manejo florestal: “há uma discussão jurídica em andamento sobre a existência da Terra Indígena Maró. A Justiça Federal considerou essa Terra Indígena inexistente”.

A argumentação do juiz despertou a reação de antropólogos e indigenistas porque nega o direito à autodenominação. Foi o caso de Jane Felipe Beltrão, vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia. “Assim que soube, entrei em contato com o procurador do caso e ofereci apoio. Essa ação atenta contra a Constituição, que garante aos indígenas o direito a se apresentar como tal”, afirma a antropóloga. Ela foi uma das pareceristas da apelação movida pelo Ministério Público Federal, que conseguiu suspender a ação.

A sentença final sobre este caso pode fixar um importante marco ou um perigoso precedente. Isso porque o juiz usa a miscigenação entre culturas para negar a identidade indígena. Argumenta, por exemplo, que o hábito de beber xibé (alimento de origem indígena feito da farinha de mandioca) seria “inservível” para caracterizar a identidade porque já foi incorporado pela população do Pará. Do mesmo modo, práticas católicas introduzidas pelos missionários servem como argumento contra o reconhecimento dessa população.

Levando o raciocínio ao extremo, todas as populações indígenas que já foram influenciadas ou influenciaram outras culturas perderiam o direito à terra.

“O juiz erra quando acha que a cultura é estanque”, pontua Jane. Ela explica que toda a população indígena da bacia do Tapajós sofreu severo processo de perseguição e repressão cultural entre os séculos 16 e 18. Entre os que não foram escravizados pelos colonos, morreram no confronto ou fugiram para outras regiões, muitos foram conduzidos aos aldeamentos: comunidades submetidas à catequese de missionários. Nesses locais, segundo o relatório de identificação da Funai, os indígenas eram ensinados a “demonizar” (termo retirado dos registros históricos) sua língua nativa, hábitos alimentares, rituais e organização política.

“A tentativa era de homogeneizar, fazer com que deixassem de ser indígenas. Por muito tempo, eles foram obrigados a ocultar sua identidade para sobreviver. Com a Constituição vem um marco importante dos seus direitos”, explica Jane. A ação dos Borari e Arapiuns na afirmação da sua identidade revela que passou o tempo de se esconder. O caso é mais um exemplo do protagonismo indígena na defesa de suas terras, tema de série de matérias da Repórter Brasil.

Para quem ainda tem dúvidas sobre o que define a identidade indígena no século 21, o cacique Dadá deixa um convite: “Pra quem questiona a minha etnia, eu quero convidar: venha até minha aldeia, venha me conhecer, mas venha para ser alfabetizado por nós. Ser indígena hoje não é o mesmo de 200 anos atrás. O fato de usar camisa, celular, computador, casa de alvenaria, de jeito nenhum isso diz que eu perdi minha cultura. Se a gente não aprender com a sociedade, vamos ser como o indígena era 200 anos atrás, enganado, roubado. Hoje nós estudamos. O indígena hoje é um cidadão brasileiro”.

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