Vemos isso quando a Justiça proíbe que universitários debatam o momento político, protestos são violentamente reprimidos pela polícia, ou quando a imprensa tenta nomear manifestações como sendo “a favor de Dilma”, silenciando o sentido delas serem pela democracia. Além do silêncio institucional, o momento também revela certo modo cínico da sociedade contemporânea.
Nesta semana um conhecido disse, de forma convicta: “eu sei que Eduardo Cunha é bandido mas, mesmo assim, primeiro temos que derrubar a presidente”, justificando o porquê dele não estar interessado em participar de manifestações pela cassação de Cunha.
A fala dele não está sozinha, pelo contrário, ela “conversa” com outras falas que produzem exatamente o mesmo efeito, um discurso que, mesmo sabendo de uma coisa, defende outra.
O mesmo ocorre quando as pessoas dizem: “Bolsonaro não presta, mas Jean Wyllys e esses esquerdopatas também não” ou “não duvido que houve tortura na ditadura, mas há muita mentira por parte dos revolucionários”.
Discursos que começam criticando a corrupção e a violência mas terminam defendendo torturadores e corruptos.
Outro exemplo recente é a reação de internautas à performance do grupo Desvio Coletivo que, em parceria com o Laboratório Performático da USP (Universidade de São Paulo), realizou a intervenção urbana MÁFIA, no vão livre do Masp, na capital paulista, no dia 23 de abril.
Na performance, os artistas cuspiram em 38 fotos de políticos que respondem a processos judiciais. Horas depois, um vídeo que relacionava a performance a um “ato repugnante de petistas” viralizou na internet.
Imediatamente foi possível ler frases como “em ato no MASP, petistas cospem e vomitam sobre fotos de políticos (não tinha Lula nem Dilma, é claro), ou “São “artistas”….kkkkk é para rir mesmo” ou “Eu sei que é uma ação artística, mas é um absurdo cuspir em políticos. Cadê os petistas?”.
“Eu sei, mas…” Essa relação entre o que se sabe e o que se acredita tem se apresentado como uma nova forma de laço social contemporâneo, um funcionamento cínico do discurso que vem sendo estudado por pesquisadores das áreas da linguagem, filosofia e psicanálise.
Nesses exemplos citados, o saber não invalidou a crença pois, ainda que se saiba que Cunha é réu no Supremo Tribunal Federal, ainda que se saiba que a performance é um ato artístico, ainda que se saiba que Dilma não é acusada de corrupção no processo de impeachment, esse saber não é capaz de impedir a crença das pessoas.
O cinismo se revela como um sintoma social que chegou a um nível moral que não esclarece nada e estimula a ignorância e a violência. Integrantes do Desvio Coletivo denunciaram que estão sofrendo ameaças e intimidações por causa do vídeo que insiste em dizer que a performance era um ato de petistas.
Diante disso, o mais assustador é que, pelo cinismo ter se tornado recorrente, por esse discurso “eu sei, mas mesmo assim” estar se repetindo, estamos naturalizando-o. Qual é o perigo de se estabilizar o cinismo?
Marx dizia que “eles não o sabem, mas o fazem”. Agora podemos dizer que eles sabem, mas isso não impede que eles façam ou digam.
As pessoas sabem que Cunha deveria ser cassado, mesmo assim continuam a agir como se não soubessem. As pessoas sabem que a performance do Desvio Coletivo é um ato artístico, mesmo assim fingem que não sabem e continuam a dizer que os performers são “petistas”. As pessoas sabem que a ditadura civil militar brasileira foi um regime de repressão e tortura, mas amenizam a história.
O discurso cínico se revela nas redes sociais, na mesa do bar e, também, nas instituições. Como escreve o analista de discurso e pesquisador do discurso cínico Lauro Baldini, o cinismo é uma prática ideológica que dá forma a nossa realidade social. Por ser uma prática, os discursos cínicos se repetem e se relacionam. E, às vezes, parece que dominam.
Junto com o cinismo também vem um certo sadismo. Um gozo que se realiza sempre que o outro – aquele que na maioria das vezes não pensa como você – é humilhado, derrotado ou ignorado por essas instituições.
Na votação da admissibilidade do processo de impeachment de Dilma na Câmara as formulações “Tchau, querida” e “Bom Dilma” mostraram como o objeto do gozo é a fantasia em que a sociedade se agarra na crença e ignora o saber.
E por que isso acontece? Porque as instituições também gozam dessa fantasia. É um sintoma compartilhado. Uma prática. E quando as instituições (o poder) participam, o gozo é legitimado: é a garantia existencial de que eles não estão sós.
* Por Amanda Cotrim, jornalista, mestre pela Unicamp e pesquisadora na área de Análise de Discurso.