Leia a reflexão do evangelho para o próximo domingo, dia 14 de abril. O texto fala sobre Lucas 22,14–23,56, e a reflexão pertence ao Pe. Wander Torres Costa.
Boa leitura!
A semana santa deste ano acontece em meio a um momento profundamente crítico do nosso país. E, como cristãos e cristãs, não podemos fingir que nada está acontecendo enquanto celebramos nossa fé. Não dá para celebrar os grandes mistérios da fé cristã de modo alienado, como se estivéssemos em outro país ou em um momento de calmaria e tranquilidade. Isso não significa transformar o espaço das pregações litúrgicas em comícios políticos ou os púlpitos em palanques. Mas não podemos ignorar a complexidade do momento presente e nos posicionarmos ética e evangelicamente. Com certeza, muitos de nós, nesta semana, vamos acompanhar não só as celebrações litúrgicas, como também os desdobramentos da crise política em que estamos imersos.
O objetivo deste texto é ser uma ajuda, a fim de que façamos um bom discernimento, com seriedade e responsabilidade. Não se trata de uma questão meramente partidária de ser a favor ou contra alguém ou um partido. Não é isso. O que está em jogo é muito mais profundo e sério. Não escrevo este texto com o objetivo de inflamar os ânimos de ninguém – apesar de saber que cada um reage ao texto de uma forma, inclusive com raiva e ódio.
O evangelho proposto para o domingo de Ramos é sempre o da Paixão do Senhor, cada ano lido a partir de um dos evangelistas. Este ano, lemos a paixão a partir da ótica de Lucas. O trecho vai do capítulo 22, versículo 14 até o capítulo 23, versículo 56. É a partir desse evangelho que desejo apresentar minha reflexão.
E o que podemos aprender dessa narrativa?
Gostaria de propor uma perspectiva de leitura a partir da multidão. Daí o título do texto: Paixão de Jesus Cristo segundo a multidão.
A primeira vez que Lucas cita a multidão no texto é no versículo 47 do capítulo 22: “Jesus ainda falava, quando chegou uma multidão. Na frente, vinha um dos Doze, chamado Judas, que se aproximou de Jesus para beijá-lo”. O que é interessante observar é que alguém vai à frente da multidão. Ela não se movimenta sozinha. Judas, nesse sentido, simboliza todos os que agitam, inflamam a multidão. A multidão segue alguém. Não tem vontade própria. Aqui multidão se equivale à massa. Basta que haja alguém para acirrar os ânimos e pronto. A multidão o acompanha para onde quer que seja. É verdade que por trás de Judas há outros que não aparecem. Aliás, aparecem como sendo os defensores da moral e dos bons costumes e, por isso mesmo, não podem “sujar” o nome e a imagem. Assim, compram pessoas como Judas, para ir à frente, incitando a multidão ao ódio e indicando o que precisa ser feito.
Tal cena me faz recordar um estudo de um filósofo chamado Theodor Adorno. Por volta de 1950, ele publicou uma pesquisa feita a respeito do que chamou de “Personalidade Autoritária”. Seu objetivo era descobrir traços fascistas latentes em cidadãos comuns e analisar panfletos e elocuções radiofônicas de agitadores fascistas, militantes e líderes de organizações fascistas. A pesquisa é bastante interessante e ajuda a compreender ainda mais esse fenômeno de que tratamos. Segundo Adorno, as pessoas aderem ao líder não por falta de politização ou consciência, mas por que se sentem atraídas, às vezes inconscientemente, pelo discurso fascista sobre sua estrutura psicológica ou o caráter determinado socialmente pela cultura. Não é algo lógico, mas psíquico. A diferença entre os líderes fascistas e seus liderados é que os primeiros possuem a capacidade de colocar o seu inconsciente para fora, sem censura, acionando e mobilizando as forças do inconsciente dos liderados. A eficácia ou poder de mobilização do discurso fascista residia, segundo o referido filósofo, na sua inverdade manifesta.
O segundo momento em que Lucas cita a multidão é a partir do versículo 1 do capítulo 23: “Em seguida, toda a multidão se levantou e levou Jesus a Pilatos. Começaram então a acusá-lo, dizendo: ‘Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo, proibindo pagar impostos a César e afirmando ser ele mesmo Cristo, o Rei’. Tal cena acontece após Jesus ser interrogado pelos anciãos e sumos sacerdotes. O falso julgamento religioso – pois eles já tinham tomado a decisão de matar Jesus – já estava concluído. Agora, só faltava o julgamento político e a sentença de morte. Tudo muito bem arquitetado. A partir daqui, é a multidão que assume o papel protagonista. Não se fala mais em Judas, nem tampouco nos anciãos e mestres da Lei. Apenas aparece uma multidão enfurecida e desejosa de matar Jesus.
No diálogo com Pilatos, os ânimos vão se acirrando cada vez mais até o ponto de desejarem a soltura de Barrabás, condenado por homicídio, e a prisão e morte de Jesus. Em meio à fúria e ao ódio, o discernimento e a sensatez deixam de existir. Não há espaço para diálogo. Só desejam a morte de Jesus. Perdem todos os parâmetros de justiça, respeito, prudência. Os apelos são irracionais e irascíveis. Diante disso, afirma o texto que Pilatos decidiu que fosse feito o que eles pediam. Soltou o homem que eles queriam, ou seja, Barrabás, e entregou Jesus à vontade deles. Quando as autoridades pensam e agem apenas para agradar a vontade de uma multidão enfurecida, sem razão e totalmente passional, o resultado é a morte. E é isso que acontece. Jesus é crucificado em meio a malfeitores.
Após a morte de Jesus, um oficial romano, que testemunhou tudo o que havia acontecido, pronuncia a sentença verdadeira: “De fato! Este homem era justo!” (Lc 23,47). E após essa afirmação, mais uma vez Lucas cita as multidões: “E as multidões, que tinham acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para casa, batendo no peito” (Lc 23,48). A afirmação do soldado romano colocou fim à onda histérica em que as multidões estavam imersas. Para os anciãos e mestres da lei, o alívio. Podiam continuar a explorar o povo sem perder seu “status quo”. E aproveitar para ocupar o lugar deixado por Jesus.
Para as multidões, o peso de ter matado um inocente, sem defesa. O bater no peito indica a dor na alma, o arrependimento pela injustiça da morte de um justo. Mas agora é tarde. Só resta baixar o seu corpo da cruz e colocá-lo em um túmulo. A partir dessa narrativa da paixão, podemos destacar alguns aprendizados.
Primeiro:
A multidão é manipulável. Não enxerga com criticidade. Vai na onda, convicta de que faz a coisa certa. Na verdade, é usada por gente oportunista que não está nada preocupada com o destino da nação. No nosso caso, a ideia do combate à corrupção é apenas uma “ideia fachada”. Se realmente houvesse preocupação com a corrupção, que é endêmica e sistêmica, a pauta seria outra. Por exemplo, a reforma política e o fim do financiamento privado e empresarial das campanhas eleitorais. Ou a regulamentação e democratização dos meios de comunicação social, que funcionam como grandes agitadores da multidão. Mas, sobre isso não se fala, pois o que se quis é apenas ocupar o lugar de quem estava governando e pronto. Na verdade, não se quer acabar com a corrupção. Ao contrário, quis-se tirar um governo que investiga a corrupção, doa a quem doer, a fim de seguir roubando. Tampouco, se pretende cuidar dos pequenos e pobres. Essas últimas palavras parecem não existir no dicionário.
Segundo:
m um regime democrático, as instituições não podem agir com o mesmo ímpeto que a multidão. Que os cidadãos expressem descontentamento a respeito desse ou daquele projeto político é compreensível. Faz parte do jogo democrático. E que de tempos em tempos, conforme as regras, queiram mudá-lo também. Contudo, quando as instituições, ao invés de assumirem a garantia das regras do jogo democrático, agem conforme a vontade passional da multidão, elas deixam de cumprir seu papel fundamental. Ao invés de promoverem o Estado Democrático de Direito passam a promover, ainda que invisivelmente, o Estado de exceção. E o pior: as penalizações valem para os grupos inimigos e os benefícios para os grupos amigos. Dois pesos e duas medidas. Uma justiça conivente e envaidecida com os interesses das elites e que passa a impressão de cumprir a lei a todo custo. Assim, corremos o risco de condenar hoje inocentes e aclamar corruptos como heróis.
Terceiro:
É preciso estar bem atentos às decisões que vamos tomar. Nossa atitude pode colocar em risco toda a história democrática do Brasil. Engana-se quem pensa que estou defendo um partido. Não estou. A vítima principal é a democracia brasileira. É ela que precisamos defender e salvar, para que não tenhamos que bater no peito, chorando e pedindo perdão pelo que fizemos ou deixamos de fazer. Em 1964, a marcha da família com Deus pela liberdade reuniu multidões. Foram manifestações ocorridas entre 19 de março e 6 de junho daquele ano. Parcelas do episcopado e clero católico também fizeram parte. Sabemos bem onde essas marchas desaguaram. E depois só restou um vergonhoso pedido de desculpas.
Como afirmei no início desse texto, apenas quero ajudar a unir fé e vida, Palavra de Deus e realidade histórica. E motivar cada um e cada uma a aprender com a paixão de Jesus e com a história do nosso país as lições que podem impedir o retrocesso das conquistas democráticas. Seja essa semana santa uma rica oportunidade de aprendizagem para todos nós.
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Pe. Wander Torres Costa é pároco da Paróquia de São Sebastião em Ponte Nova e professor da Faculdade Arquidiocesana de Mariana “Dom Luciano Mendes de Almeida”. O texto foi partilhado pelo autor. Revisão de Ildo Bohn Gass.