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As letras libertárias de Maria Valéria Rezende

publicado por Carta Capital*

Maria Valéria Rezende foi convidada a morar na Nicarágua no fim da década de 1970. Durante o governo sandinista, a freira e professora cuidava da alfabetização de agricultores. Graças a esse trabalho, Fidel Castro contratou-a para ensinar aos trabalhadores dos canaviais cubanos.

A experiência bem-sucedida tornaria a religiosa uma conselheira do “Comandante”, que gostava de jogar conversa fora madrugada a dentro. Por vezes, o desjejum ocorria na companhia do escritor Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e presença constante na ilha.

Como no poema de Carlos Drummond de Andrade, a freira foi ser gauche na vida. A maior parte dos seus 74 anos ela dedicou aos deserdados do mundo. Às experiências com analfabetos na Nicarágua e Cuba juntam-se projetos semelhantes em Timor e Angola. Entende-se, portanto, a onipresença dos excluídos em seus livros.

A religiosa acumula 15 obras, dez delas dedicadas ao público infantojuvenil. “Só posso escrever sobre o que conheço”, explica. No ano passado, a discreta Maria Rezende conheceu a fama repentina. Seu romance Quarenta dias (Editora Objetiva, 248 págs. R$ 39,90), sobre as agruras de uma professora aposentada em uma periferia do Nordeste, venceu o Prêmio Jabuti, uma das principais láureas do mercado editorial brasileiro.

Escrever e educar são as bissetrizes da religiosa.

Nascida em Santos, ela começou ainda na adolescência a dar aulas de alfabetização no sindicato dos estivadores da cidade. Aos 24 anos ingressou na Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho e tornou-se freira. Formada em Pedagogia, Maria Rezende viu-se obrigada a passar alguns anos longe do Brasil.

Durante a ditadura, estendeu os braços a militantes de esquerda. A generosidade evidentemente desagradou às forças de repressão, que passaram a persegui-la. Achou por bem exilar-se. Entre os trabalhos voluntários na América Latina, Ásia e África, formou-se em Literatura Francesa na Universidade de Nancy e fez mestrado em Sociologia.

Sobre a opção da vida atrelada à Igreja, ela, em uma breve conversa sobre os papéis de uma freira na sociedade moderna, traz um ponto de vista que vai além da habitual caricatura das religiosas.

“A depender do tipo de congregação e sua finalidade”, inicia, “pode-se ter uma opção prioritária para sua missão, como educação, saúde, pastoral nas comunidades populares, ou uma vida mais recolhida de oração e acolhida aos que buscam apoio espiritual e humano. Somos mulheres leigas, não somos uma espécie de subpadres, não pertencemos ao clero, não somos, em princípio, funcionárias da instituição eclesiástica. Temos de ter profissão normal como outras mulheres e ganhar nossa vida como elas. Apenas escolhemos um estilo de vida que nos deve deixar mais disponíveis ao serviço, aos irmãos, sobretudo os mais abandonados por essa sociedade. E não priorizamos a ‘carreira’, mas o serviço.”

Maria Rezende logo elegeu como prioridade de vida a alfabetização de adultos pobres. Após a temporada fora do Brasil, decidiu instalar-se em João Pessoa, onde vive até hoje. Na capital paraibana, trabalhou com sem-terras e hoje dedica-se a auxiliar imigrantes africanos e haitianos.

Numa época na qual a religião costuma ser colocada em xeque, a freira não perde a fé. “A função da religião é promover, pela sua prática principalmente, a fraternidade, a solidariedade, a tolerância, a acolhida ao outro, ao diferente e à crítica, mais pela ação do que pela pregação, daquilo que separa, brutaliza, exclui.”

A religiosa aprova o papado de Francisco:

“Ele tem cumprido belamente o papel que lhe cabe: pregar e agir segundo os valores do Evangelho, desde o patamar mais simples, de sua vida e imagem pessoal, evitando a pompa dos poderosos deste mundo, que se foi acumulando por séculos no Vaticano, até tomar a posição de mediador e pacificador diante dos conflitos de todo tipo que assombram o mundo nestes nossos tempos tão perigosos.”  

Maria Rezende divide uma casa com outras freiras e confessa a dificuldade em lidar com a “crise de celebridade instantânea” que o Prêmio Jabuti lhe trouxe. Dentre as dores de cabeça está a provocada por uma foto frontal com um cigarro na boca.

Muitos, de boa ou má-fé, declararam-se assustados ou desiludidos com o fato de uma religiosa fumar. Outros imbuíram-se da missão divina de convencê-la a largar o vício. Ela se incomoda, como se pensassem que ela desconhecesse os efeitos do cigarro. Mas o que são algumas baforadas diante dos males deste mundo?

Publicado originalmente na edição 894 de CartaCapital, com o título “Letras libertárias”.

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