Artigos e Reflexões

Sem função social a propriedade deixa de existir

A propriedade que não cumpre a função social não existe e, consequentemente, não merece proteção

Por Gilvander Moreira*

 

De forma contundente, o jurista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Roberto Grau afirma que a propriedade que não cumpre a função social não existe, e, como consequência, não merece proteção, devendo ser objeto de perdimento, e não de desapropriação. Textualmente, pondera Eros Grau, no livro A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica): “[…] a propriedade dotada de função social, que não esteja a cumpri-la, já não será mais objeto de proteção jurídica. Ou seja, já não haverá mais fundamento jurídico a atribuir direito de propriedade ao titular do bem (propriedade) que não está a cumprir sua função social. Em outros termos, já não há mais, no caso, bem que possa, juridicamente, ser objeto de direito de propriedade […] não há, na hipótese de propriedade que não cumpre sua função social “propriedade” desapropriável. Pois é evidente que só se pode desapropriar a propriedade; onde ela não existe, não há o que desapropriar” (GRAU, 1990, p. 316).

Na mesma linha, de forma incisiva, o jurista italiano Pietro Perlingieri afirma que o proprietário “(…) só recebeu do ordenamento jurídico aquele direito de propriedade, na medida em que respeite aquelas obrigações, na medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico, desaparece o direito de propriedade” (PERLINGIERI, 1971, p. 71).

Na esteira da crítica à acumulação capitalista moderna, a noção de função social da propriedade da terra foi inscrita na Constituição de 1988 (CF/88) graças à luta dos movimentos sociais camponeses desde as Ligas Camponesas que, após conquistarem o Estatuto da Terra, em 1964, preparou o terreno para a inscrição na CF/88. A luta pela terra tem contribuído para a construção de uma nova jurisprudência no Brasil, já existindo várias decisões dos tribunais que reconhecem a ocupação de propriedades que não cumprem a função social como um direito legítimo do povo, muitas vezes, sem-terra e sem-moradia. Portanto, a luta pela terra como pedagogia de emancipação humana tem avançado também no meio jurídico criando a concepção segundo a qual em uma ocupação coletiva de terra o que ocorre não é invasão, mas legítima ocupação de propriedades que, por não estarem cumprindo a função social, desocupadas e ociosas, perdem o direito do pretenso proprietário. Sem função social, o proprietário perde o critério objetivo inerente à propriedade, que é o direito de posse, mantendo somente o critério subjetivo, que é o direito de ser indenizado pela perda do bem imóvel.

Como fruto da luta renhida pela terra, o campesinato organizado conseguiu inscrever na Constituição de 1988 também o artigo 186, que enumera os requisitos indispensáveis para que a propriedade atenda à função social e que já havia sido incluído no Estatuto da Terra, passa a ter a natureza jurídica de princípio fundamental. Pelo artigo 186 da CF/88 toda propriedade deve cumprir, simultaneamente, conforme os graus de exigência fixados em lei – Lei 8629/ 93, quatro critérios: a) o aproveitamento racional e adequado: deve ser produtiva; b) a utilização adequada dos recursos e preservação do meio ambiente: não pode ser monocultura, por exemplo; c) a observância das disposições que regulam as relações de trabalho: não pode haver desrespeito às leis trabalhistas; e d) a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores: participação dos trabalhadores na renda da propriedade.

Além das quatro exigências constitucionais para se cumprir a função social da propriedade fundiária, outras duas exigências deveriam estar inscritas na Constituição: um limite para a propriedade fundiária e a expropriação da propriedade fundiária sem ter que pagar algo, pois sem um limite de área há capitalistas proprietários de imensas propriedades, o que reforça a acumulação de capital e ao pagar a terra ao ser desapropriada se premia quem não conferiu função social à terra.

Necessário se faz em uma perspectiva histórica, considerando os camponeses injustiçados, analisar como foi concebida ao longo da história da humanidade a ideia de propriedade privada. O filósofo Jean Jacques Rousseau, por exemplo, analisa a criação da propriedade privada da terra como algo que instaura a desigualdade social. “A transformação da terra em propriedade privada absoluta e individual foi um fenômeno da civilização europeia, histórico, recente e datado, espalhado pelo colonialismo ao resto do mundo” (MARÉS, 2003, p. 133). Karl Marx e outros teóricos marxistas elucidam a noção de propriedade dos meios de produção, a terra no nosso caso, e o que isso significa na sociedade capitalista. Valiosa é a contribuição de István Mészáros (2007), que em A Educação para além do Capital, tece uma perspicaz análise. Diz ele: “Os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema como um todo, que necessariamente os produz e constantemente os reproduz. A recusa reformista em abordar as contradições do sistema existente, em nome de uma presumida legitimidade de lidar apenas com as manifestações particulares […] é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar, sem uma análise adequada, a possibilidade de se ter qualquer sistema rival e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista. “Mudança gradual” é disfarce para continuar o mesmo sistema. As mudanças são admissíveis apenas com o único e legítimo objetivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma que sejam mantidas intactas as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo, em conformidade com as exigências inalteráveis da lógica global de um determinado sistema de reprodução” (MÉSZÁROS, 2007, p. 197). Enfim, uma das colunas mestras do capitalismo, a propriedade privada capitalista deixa de existir sem o cumprimento da função social, que é a coluna mestra da propriedade. Não basta apresentar escritura e registro da propriedade sem a comprovação da função social da propriedade. Portanto, ocupar propriedades que não cumprem a função social, no campo e na cidade, é um direito constitucional.

Referências

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). São Paulo: Revista dos tribunais, 1990.

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. In: MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, p. 195-223, 2007.

PERLINGIERI, Pietro. Introduzione allá problematica della proprietá. Camerino: Jovene, 1971.

Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima:

FUNAI VISITA Retomada Kamakã Mongoió, em Brumadinho, MG: mandioca, água e recepção à FUNAI

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Ameaça de despejo da Ocupação Vila Fazendinha, em Belo Horizonte, MG. Alto lá! Vídeo 1 – 08/12/21

*Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Ocupações Urbanas; professor de Direitos Humanos e Movimentos Populares em curso de pós-graduação do IDH, em Belo Horizonte, MG, autor de livros e artigos.

 

Artigo publicado no portal DOM TOTAL

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