Artigos e Reflexões

O silenciamento espiritualizado na voz de uma mulher

Por Lusmarina Campos Garcia*

O novo clipe da cantora gospel Cassiane trata da violência contra a mulher e propõe a oração e a bíblia como meios de resolução para a questão da violência doméstica. A bíblia e a oração fazem parte do universo da fé e se constituem, muitas vezes, em importantes instrumentos de mudanças comportamentais.

No entanto, a bíblia pode ser (e é) majoritariamente utilizada para justificar os discursos de subjugação das mulheres e da violência que contra elas se pratica.

O clipe comete vários equívocos e atrocidades:

1. parte da premissa de que uma pessoa, sem o instrumental interpretativo apropriado, possa fazer uma leitura libertadora de um livro que tem sido, historicamente, utilizado para oprimir as mulheres; ou seja, da fonte da opressão sai, milagrosamente, uma leitura libertadora. O homem do clipe passa a ir à Igreja. E qual ensinamento ele vai ouvir do sermão do seu pastor?

2. ignora que a violência é fruto de doença psíquica, familiar e social e requer um processo complexo para alcançar a “cura”. O clipe situa a “cura” no âmbito individual, e desconhece a sua dimensão mais ampla, que são os lugares onde tais violências se originam.

3. cria a falsa impressão de que é possível que uma mulher, no isolamento da sua casa, e no silêncio da oração, consiga, sozinha, enfrentar a violência doméstica. O clipe é uma defesa do silêncio diante da violência. Embora apareça o número de denúncia na tela, a linguagem do clipe induz as mulheres a se calarem diante da agressão e do seu agressor.

4. parte da realidade de mulheres de classe média e parte também da premissa de que as mulheres possuem alternativas, ou seja, que podem deixar a sua casa e ir para um outro lugar sem maiores consequências. O clipe desconsidera a realidade das mulheres pobres e advoga que diante da violência sofrida, a mulher deixe a casa. Deixar a casa tem consequências legais. 

Imagem reprodução clipe Youtube

Então, a mensagem do clipe é: a mulher que sofre violência fique em silêncio, busque individualmente e sozinha, em oração, uma resposta, perdoe o agressor mesmo antes dele pedir perdão, e deixe de presente uma bíblia e a casa, para que ele a seu tempo e no conforto do seu lar, desenvolva a consciência do crime praticado e busque “a cura”. É a misoginia reiterada na espiritualidade cantada na voz de uma mulher.

Veja o clipe na integra aqui

Teóloga e pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, participantes do movimento ecumênico desde a década de 1980. Liturgista, junto com Ernesto Cardoso organizou a Rede de Liturgia do Conselho Latino-Americano de Igrejas. Atuante no movimento inter-religioso desde 1992. Na presidência do CONIC-Rio (2014-216) organizou a reconstrução do terreiro da Mãe Conceição D’Lissa em Duque de Caixa. Pastoreou paróquias luteranas no Brasil e na Suíça de 1998 a 2012. Rio de Janeiro/RJ.

 

Artigo publicado originalmente n portal da Revista Senso 

 

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