Artigos e Reflexões

Bíblia: Muitas teologias, muitos rostos, muitas vozes

Em alusão a semana pela harmonia inter-religiosa, o CEBI convida todas as pessoas a refletirem através do artigo de Luiz José Dietrich sobre as diversidades de teologias, rostos e vozes que encontramos nas Sagradas Escrituras.


Bíblia: Muitas teologias, muitos rostos, muitas vozes.
O desafio de discernir os espíritos.

Muitas vezes as doutrinas que recebemos nos levam a imaginar e ler a Bíblia como se nela se encontrasse somente uma teologia, somente uma cristologia, somente uma eclesiologia. Isso, porém corresponde mais às doutrinas do que à realidade. Na verdade, a Bíblia contém muitas teologias e muitas vozes, e não raro, inclusive contraditórias entre si. Nossas doutrinas nos impedem de ver e ouvir essa diversidade de vozes. 

Neste pequeno texto queremos somente apontar algumas delas e deixar pistas para uma reflexão que nos leve a uma compreensão mais profunda da Bíblia e que nos permitam compreendê-la e lê-la como o que realmente ela é: um produto da caminhada de um povo e das culturas humanas nas quais este povo humano se constituiu e se desenvolveu, e que em determinados momentos de sua história foi instituído como Palavra de Deus, ou como Escritura Sagrada.

Por isso ela tem, entre outras características, teologias, projetos, e vozes em discordância, ambíguas e até contraditórias. Como exemplo de ambiguidade, podemos por exemplo apontar alguns textos violentos que legitimaram muitas violências ao longo da história do cristianismo, como 

33Javé, o nosso Deus, o entregou diante de nós, e nós o derrotamos, como também a seus filhos e a todo o seu povo. 34Nessa ocasião, capturamos todas as suas cidades e consagramos cada uma delas ao extermínio. De homens, mulheres e crianças, não deixamos nenhum sobrevivente. 35Como despojos, pegamos apenas o gado, além do saque das cidades que conquistamos. (Dt 2,33-35).

Isso se repete em Dt 3,1-7. Além da violência há também a legitimação da escravidão: 

1Tomamos outro rumo e começamos a subir o caminho de Basã. Og, rei de Basã, saiu com seu povo para nos enfrentar em Edrai. 2Javé me disse: “Não tenha medo dele, pois eu o entrego em suas mãos com todo o seu povo e sua terra. Faça com ele o que você fez com Seon, rei dos amorreus, que habitava em Hesebon”. 3Foi assim que Javé, o nosso Deus, entregou em nossas mãos também Og, rei de Basã, com todo o seu povo. Nós os atacamos até não restar nenhum sobrevivente. 4Nessa ocasião, capturamos todas as suas cidades. Não houve povoado que não tomássemos: ao todo, sessenta cidades na região de Argob, que
era o reino de Og, em Basã. 5Todas essas cidades eram fortificadas com altas muralhas, portões e trancas, sem contar o grande número de cidades sem muros. 6Nós as consagramos ao extermínio, assim como havíamos feito com Seon, rei de Hesebon. Consagramos ao extermínio cada cidade, homens, mulheres e crianças. 7Para nós, saqueamos todo o gado e o despojo das cidades. (Dt 3,1-7; conteúdo semelhante encontra-se em Dt 20,10-14; Dt 21,10-14; cf. Nm 31,13-18).

São textos que que revelam muita violência e intolerância. Textos semelhantes a estes encontramos também em abundância no livro de Josué, que é o livro escolhido para ser lido e refletido no mês da Bíblia de 2022. Um dos refrões muito utilizados no livro de Josué é:

“e passaram todos ao fio da espada” (Js 6,21; 8,21-28; 10,28.30.32.35.37.39; 11,11.12.14)

referindo-se aos vários massacres perpetrados pelos israelitas, guiados por Javé e comandados por Josué, contra os povos que viviam em Canaã. Encontramos muitos outros versículos como estes ao longo da Bíblia. De quem será esta teologia? De quem é esta voz? Que Deus é este que aceita saquear, escravizar e matar pessoas em seu nome? 

 

Vozes da religião oficial: a teologia dos reis 

Esta é sem dúvida a teologia oficial do período de Ezequias e de Josias. É a voz dos reis, dos sacerdotes, escribas e profetas oficiais que buscam legitimar a violenta imposição religiosa realizada pelos reis Ezequias e Josias. Ezequias, por volta dos anos 710 – 705 a.C., estabeleceu Javé como o único Deus de Israel e Jerusalém como o único local de culto (2Rs 18,4). Talvez a imposição religiosa centralizadora de Ezequias não tenha se mantido, pois logo em seguida a Assíria reestabelece seu controle sobre a região, destrói muitas cidades de Judá ao redor de Jerusalém (2Rs 18,13), e deixa o rei Ezequias cercado, “como um passarinho na gaiola”. Jerusalém escapa de ser destruída, submetendo-se e pagando grande tributo à Assíria (2Rs 18,14-16). Após a morte de Ezequias, seu filho Manassés é colocado no trono pelos grupos pró-assírios e se submete totalmente ao domínio assírio. Muito provavelmente Manassés desfez toda a reforma religiosa imposta por Ezequias (2Rs 21,3-9). 

No entanto, ao lermos os textos bíblicos sobre Manassés (2Rs 21,1-18) deveremos lembrar que este texto foi escrito pelos escribas, sacerdotes e profetas oficiais, que entre os anos 700 e 600 a.C., produziram a Obra Histórica Deuteronomista (Js; Jz; 1 e 2Sm; 1 e 2Rs) exatamente com o objetivo de legitimar as reformas centralizadoras de poder e concentradoras de riqueza em Jerusalém. Nem Manassés foi tão mau, e nem Ezequias e Josias foram tão santos como são pintados nestes textos. Do ponto de vista dos camponeses todos eles são reis e vivem dos tributos e da exploração das famílias camponesas. A teologia Deuteronomista que critica o rei Manassés por ter inundado Jerusalém com sangue inocente (2Rs 21,16), é a mesma que ordena que se mate sem piedade a qualquer pessoa que fale em “seguir outros deuses”, isto é cultuar um Deus diferente daquele imposto por Ezequias e Josias, que inclusive, segundo os textos bíblicos, matou sacerdotes de antigos e tradicionais santuários, como o de Betel (2Rs 23,15-20). É o Deus da teologia oficial de Ezequias e de Josias que está por trás das narrativas de massacres que encontramos em Josué, dos textos violentos e intolerantes que encontramos em Êxodo (23,23-24.32-33; 32,26-29), Deuteronômio (Dt 7,1-6; 12,2-3; 13,1-19), e nos textos de Josué que vimos acima. É um Javé desenhado à imagem e semelhança dos reis Ezequias e Josias, é o Deus da Teologia oficial da monarquia davídica.

 

O peso dos rituais e das doutrinas

Talvez nós não tenhamos percebido a violência nestes textos. Um ponto importante para explicar isso é que nós nunca experimentamos um ataque desse tipo contra a nossa religião. Sempre formos da religião dominante. De fato, em nossa catequese, em nossa formação cristã, aprendemos que a idolatria é uma coisa muito ruim. Que o ídolo nos afasta de Deus, que o ídolo é colocado no lugar de Deus, e por isso é um grande pecado. Geralmente católicos e evangélicos, fomos formados dentro de uma teologia tradicional que pouco se distanciou daquela teologia que ao longo da história do cristianismo ocidental, legitimou e justificou as perseguições, torturas e violências feitas contra as mulheres consideradas bruxas, as pessoas e grupos considerados hereges e caçados pela inquisição. Um a teologia que, em grande parte, ainda não foi alterada em profundidade por um mea culpa pela escravização, destruição dos povos e culturas indígenas de toda a América, pela participação na escravização dos povos africanos….Na formação tradicional, por ter andado por muitos séculos, quase dois milênios de mãos dadas com os impérios romano, bizantino, inglês, espanhol, português….tem seu coração, geralmente, mais próximo do império romano do que das teologias da libertação que por algumas décadas floresceram no continente americano e africano. Por isso talvez nem todos e todas nós lemos e ouvimos estas passagens violentas na Bíblia e não nos indignamos com as violências ali narradas. Nossa formação nos faz prezar mais o ritual e as doutrinas que a prática cotidiana, mais a moral que as injustiças e desigualdades sociais. Como explicar que entre cristãos haja mais indignação com o beijo dos dois super-heróis das histórias em quadrinhos do que com as imagens das pessoas revirando lixo, ou disputando ossos e restos de frigoríficos buscando algo para comer? 

Idolatria, no entanto, não tem nada a ver com imagens. Para outra voz presente na Bíblia, a voz profética e sua condenação ao uso de imagens, tem mais a ver com o tipo de culto, de religião, que a elas estão associados. Criticam-se as imagens mais por suas funções e pelas consequências de certos cultos do que às imagens em si. Podendo ser possível, nesse sentido, haver “idolatria” sem necessariamente haver imagens.

Vejamos o texto do Salmo 115,4-7:

4São de prata e ouro os ídolos deles, e foram feitos por mãos humanas; 5esses têm boca e não falam, têm olhos e não veem, 6têm ouvidos e não escutam. têm nariz e não cheiram; 7têm mãos e não apalpam, têm pés e não andam, nem sua garganta produz sussurro algum. Os ídolos deles são obras de mãos humanas.

A verdadeira causa da condenação não está simplesmente no fato de as imagens, que aqui o texto chama de “ídolos”, serem “de ouro e de prata…feitos por mãos humanas”, e se caracterizarem pela imobilidade e insensibilidade. O problema está sim no fato de essa imobilidade e essa insensibilidade se transmitirem aos que fazem e confiam nestas imagens. Na continuidade do salmo, o versículo 8 do Salmo 115, diz literalmente isso: “Estão sendo, ou serão, como eles todos aqueles que os fazem e que neles confiam”.  A crítica diz que estes Deuses de ouro e de prata são imóveis e insensíveis, e o resultado do culto a Deuses imóveis e insensíveis é que aqueles que mantêm estes cultos, e aqueles e aquelas que seguem a este tipo de Deuses, “ficam como eles”, isto é, também se tornam imóveis e insensíveis. Mas, imóveis e insensíveis frente a quê?

Para compreender a profundidade da denúncia precisamos colocar o texto do Salmo diante da provável referência a que ele está associado. Os “ídolos” aqui são apresentados fazendo um contraponto a uma outra narrativa, a um outro tipo de Deus. O Salmo faz um contraponto com a imagem de Deus apresentada em Ex 2,23-25

23Os filhos de Israel gemiam por causa da servidão. Eles clamaram, e da servidão seu grito de aflição subiu até Deus. 24E Deus ouviu o clamor deles, e lembrou-se da aliança…. 25e Deus viu os filhos de Israel e os reconheceu…. 

A mesma imagem pode ser vista em Ex 3,7-8a:

7Javé disse: estou vendo muito bem (a Bíblia de Jerusalém traduz: eu vi, eu vi) a aflição do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus sofrimentos. 8Desci para libertá-los…”.

Pode-se notar que a descrição dos ídolos no Salmo corresponde à imagem invertida de uma atitude, como um negativo, da descrição da divindade do êxodo. No êxodo a ação da divindade se dá por sua sensibilidade para com os escravos, para com os oprimidos. A divindade do êxodo caracteriza-se por ver os injustiçados e ouvir os gemidos dos escravizados e os gritos dos oprimidos, e por agir, por não permanecer insensível e imóvel frente a isso. Vendo os injustiçados e ouvindo os clamores dos explorados frente a seus exploradores a divindade do êxodo age para libertar. Se solidariza com os oprimidos, toma partido deles, age, coloca-se em seu meio para salvá-los, para libertá-los.

Numa perspectiva não ritualista, não doutrinária, do ponto de vista profético, a questão da idolatria vai muito além das imagens: idolatria é todo culto a Deus –com imagens ou sem imagens– que não nos torna sensíveis e solidários para com os pobres e injustiçados, que não nos faz ver as injustiças e ouvir os gritos dos injustiçados, e que não nos leva a solidarizarmo-nos com eles, a pormo-nos em seu lugar, em seu meio e a lutar com os oprimidos pela superação da opressão, das injustiças e das desigualdades. Por isso, para os profetas e as profetisas de Israel, o culto oficial de Israel e de Judá podia ser caracterizado como uma idolatria, e no qual Javé não tem prazer (Is 1,10-20; 58,1-12; Jr 7,1-11; Os 4,4-10; 6,4-6; Am 5,21-24; Mq 3,1-7).

 

As primeiras lutas contra imagens: A vos dos profetas e profetisas

É esse também provavelmente o sentido e o espírito das primeiras lutas proféticas, que se dirigem especialmente contra determinadas imagens. Temos dificuldade de perceber isso, não só por causa das traduções, que às vezes nos impedem de ver Israel em seu período politeísta, com liturgias e cultos que incluíam grande diversidade de imagens, mas também porque na cabeça de muitos de nós está a ideia de que todas as imagens cultuais, de qualquer forma e material, foram condenadas desde o início da história de Israel.

Entretanto, se olharmos os textos com um novo olhar, instigados e informados pelas contribuições da nova arqueologia, se tratarmos de compreender os israelitas vivendo dos anos 1500-1400 a.C. aos anos 700 ou 600 a.C. em um mundo de muita diversidade religiosa, em meio a muitos deuses e deusas, com muitos locais de culto, com uma grande diversidade de liturgias, objetos e imagens, talvez consigamos perceber que a condenação das imagens, e sua associação com “idolatria”, não começou no início da história de Israel, e que o processo que culminará com a proibição de qualquer tipo de imagem, de qualquer material, com qualquer forma, como aparece por exemplo em Dt 5,8, deriva-se da condenação de um tipo especial de imagens. E também poderemos ver que nesse processo o sentido primeiro, profético, foi deturpado. E o resultado, a condenação geral de todas as imagens no contexto das reformas de Ezequias e Josias, em muitos sentidos é uma traição do espírito profético inicial.

Provavelmente os primeiros gritos profético contra as imagens ecoam ainda hoje nas páginas da Bíblia naqueles versículos que condenam os “deuses de metal fundido”, e os “deuses de ouro e de prata”, em Ex 20,23

Vocês não farão para mim deuses de prata e deuses de ouro, vocês não farão para vocês” 

E também em Ex 34,17:

Deuses de metal fundido não farás para ti.

Dois aspectos chamam a atenção nestes versículos: O primeiro é que tanto as imagens de “metal fundido”, como as de “prata e ouro” são chamadas de “deuses”. Não recebem uma qualificação pejorativa. Não são chamadas de “ídolos”. São chamadas de “deuses”! Para quem fala neste versículo, estas imagens são deuses. Como Labão, quando procura seus terafins pergunta: “porque roubaste meus Deuses?” (Gn 31,30) Aqui também, mesmo expressando uma condenação estas imagens são ainda chamadas de “deuses”. Isso mostra que são textos antigos. E, em segundo lugar, chama a atenção que em Ex 34,17 a proibição é dirigida especificamente a um tipo de imagem. Veta somente a confecção de um tipo exclusivo de imagens. Especificamente as imagens de metal fundido são proibidas. E Ex 20,23 proíbe somente imagens feitas de ouro e de prata. Imagens de cerâmica, pedra, madeira ou outro material, não são proibidas. 

Para compreender melhor esta questão é interessante perceber que em Ex 20,22-26, uma das partes mais antigas do chamado “Código da Aliança”, nesse trecho do código proibição de fazer “deuses de ouro e deuses de prata” está associada à proibição de fazer “altar de pedras lavradas”. A presença desses versos testemunha a antiguidade das primeiras tradições que compõem o código. Sua origem é anterior às reformas de Ezequias e de Josias. São de um tempo em que ainda se admite a existência de altares fora de Jerusalém: “Em todo lugar onde eu fizer lembrar o meu nome, virei a você e o abençoarei” (20,24). Na primeira parte do código inclusive se legisla a respeito desses altares, dizendo que tipos de altares são permitidos (de terra, de pedras em estado natural) e que tipo de altar é proibido (de pedras lavradas). Percebe-se aqui a mesma especificidade da lei que proíbe deuses de ouro e de prata. Também aqui claramente se proíbe um tipo muito específico de altar.

A proibição dos deuses de ouro e de prata, e a proibição do altar de pedras lavradas, provavelmente pertencem ao marco inicial do processo de redação do Código da Aliança. Estas denúncias podem ter sido feitas em nome de Javé, mas ainda não propõem ou supõem uma centralização do culto, ou exclusividade do culto a Javé. 

E quando nos perguntamos qual é a teologia, a voz que grita estas proibições, ou por outra via, onde se encontravam os altares proibidos (de pedras lavradas), e as imagens proibidas (de ouro e de prata), somos levados a concluir que estas proibições ecoam algumas das primeiras críticas da profecia camponesa (Amós, Oseías) contra o uso da religião para explorar os camponeses.

Aqui chamamos atenção para a especificidade da proibição. A proibição refere-se aos deuses de metal fundido, ou deuses de ouro e deuses de prata. Imagens de pedra, madeira ou cerâmica não são proibidas. Por que somente são proibidas as de metal? Por que não se pode fazer um “altar de pedras lavradas”? Quem possui ou pode fazer tanto imagens de ouro e prata como altares de pedras lavradas? Onde eram encontrados?

As perguntas têm a mesma resposta. Eram encontrados nas principais cidades. Talvez somente nas capitais e nas cidades com “santuários do rei” (Am 7,13). São materiais caros, precisam ser importados, ou precisam ser importados os artesãos que os façam (1Rs 5,31-32; 7,13-14). A condição para que sejam feitas é o acúmulo de riqueza e de poder. Esse acúmulo é feito às custas da opressão do povo camponês que vive e trabalha ao redor das muralhas das cidades. Imagens de metal fundido, de ouro e de prata, e altares de pedras talhadas são característicos do culto nas cidades, como os que a arqueologia encontrou em Bersabeia e em Dan, por exemplo. 

Estes versículos ecoam os primeiros gritos dos camponeses contra o uso da religião para explorá-los. É no geral um grito contra a religião oficial das monarquias e seus centros de culto, nos quais a ostentação de altares caros e deuses de metal fundido, ou mesmo de ouro e de prata, tinham a função de legitimar a exploração das famílias camponesas (Os 8,4-5; 13,2; cfr. Lv 19,6; Dt 9,12.16; 27,15; 1Rs 14,9; Is 30,22). E Ex 34,17: “Não faça para você deuses de metal fundido”, talvez seja a forma mais antiga da crítica aos deuses de ouro e aos deuses de prata.

Esse largo percurso nos mostra que no início as leis contra imagens não tinham nada a ver com a maior parte dos discursos teológicos que hoje rebaixam ou condenam as pessoas, povos, culturas e religiões que usam imagens em seus rituais de culto. As vilas camponesas no Israel pré-exílico estavam cheias de locais de culto, os “lugares altos”, montículos de terra e de pedras, árvores, colunas de pedra, e também possuíam muitas imagens de pedra, madeira e cerâmica. E também muitas divindades com uma grande variedade de liturgias associadas a estas diferentes divindades e a suas respectivas áreas de atuação na vida das pessoas e vilarejos. Em suas liturgias e em seus cultos, porém, ninguém ficava mais rico ou mais pobre. Seus cultos estavam bem mais ligados às necessidades e tempos da vida concreta do que a funções de concentração de poder e de riqueza. 

Assim, podemos perguntar: onde de fato está a “idolatria”? Num culto com diversidade de deuses e deusas e imagens, ligado à defesa e à promoção da vida, ou num culto centralizado em um só local, em um só Deus, com uma única liturgia, mas que está desligado da defesa e da promoção da vida, legitimando concentração de poder e riqueza? 

É bastante possível que estas denúncias dos profetas camponeses passaram a fazer parte das leis oficiais de Israel quando Jeú, apoiado pelo profeta Eliseu, massacra a dinastia de Amri e impõe o culto a Javé como o culto oficial no Israel norte (2Rs 10,16-28; cf. 1Rs 16,31-33). Possivelmente nessa ocasião o profeta Eliseu passou a fazer parte da corte de Jeú. Ou, mais tardar, nas reformas de Ezequias e de Josias. 

E assim também se pode perceber com grande clareza o lado ambíguo da religião oficial: leis que na origem eram contra o acúmulo de riqueza e de poder realizado pela monarquia, quando integradas nas reformas eram postas a serviço da monarquia e visavam dar-lhe legitimidade. 

 

Abrindo a palavra

Para finalizar essa reflexão, devemos perceber que a mesma polifonia teológica que temos em nossas sociedades atuais temos também dentro da Bíblia. Também eles tinham vivências religiosas insensíveis às dores, às injustiças e às desigualdades sociais. Parte da religião da Bíblia também servia para legitimar e justificar governos insensíveis às dores dos oprimidos e à exploração. Parte dos textos bíblicos legitima a violência em nome de Deus. Inclusive a matar em nome de Deus. Grande parte do cristianismo oficial fez isso muitas, porém com uma grande mudança. O fizeram em nome de Jesus Cristo. Que para eles era o Jesus Cristo Pantokrator, o todo poderoso. Um Jesus criado a imagem e semelhança do imperador. Cuja característica maior é o poder. Não a a sensibilidade às pessoas que sofrem, que são exploradas e oprimidas. Seguiam a religião oficial dos reis de Israel, e não a proposta das profetisas e profetas de Israel. E assim colocaram na boca de Jesus a teologia daqueles que o condenaram à morte. Matar em nome de Deus, por questões morais, doutrinárias, ser insensível às injustiças, violências e desigualdades sociais fazia parte da teologia daqueles que condenaram Jesus. Nunca foi teologia de Jesus de Nazaré.

Precisamos nos reencontrar com Jesus de Nazaré. E isso passa por compreender e discernir a diversidade de vozes e teologias que perpassa a Bíblia. Precisamos nos sensibilizar pelas violências e nos massacres que nela são legitimados. Fazendo isso na bíblia poderemos redescobrir o nosso papel e o papel de nossas comunidades, compreender qual é a Palavra do Deus sensível do êxodo, dos profetas e de Jesus para nós e nossas comunidades,  num contexto marcado por tantos massacres e genocídios: dos pobres, negros e indígenas pelo descaso do governo frente à Covid-19, às queimadas e o avanço do garimpo  que massacram a floresta Amazônica e os povos indígenas e ribeirinhos que ali vivem; frente ao crescimento do feminicídio e da homofobia assassina….e assim por diante. Uma parte do ouro e da riqueza buscada por essa ganância depredadora, violenta e assassina, do sistema capitalista neoliberal vai parar em dedos, braços, orelhas e pescoços de muitos cristãos e cristãs, e também em reluzentes anéis e relógios de pastores, hierarcas religiosos, e em utensílios brilhantes elevados sobre os altares….Precisamos de uma teologia que se preocupe com isso, que seja sensível a isso, que se deixe sensibilizar  pelos gritos dos que pagam o preço da concentração de poder e riqueza, e que guiada pelo Espírito de Jesus, possa reencontrar o caminho do seguimento a Jesus de Nazaré e contribuir decisivamente para um mundo sem violências, injustiças e discriminações e com a preservação de todas as formas de vida e da vida com dignidade.

 

Para aprofundar:

DIETRICH, Luiz José. Violências em nome de Deus. São Leopoldo: CEBI, 2013.

DIETRICH, Luiz José; SILVA, Rafael Rodrigues da. Em busca da Palavra de Deus. Uma leitura do Deuteronômio entre contradições, ambiguidades, violências e solidariedades. São Paulo: Paulus, 2020.

DIETRICH, Luiz José. TRIANA RODRIGUES, Jorge Yecid. Quando imagens passam a ser consideradas ídolos. Em: Revista Theologica Xaveriana, vol. 66, no 181, p. 103-122. Disponível em: https://www.academia.edu/57372258/Quando_imagens_passam_a_ser_consideradas_%C3%ADdolos

 

Luiz José Dietrich
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