Artigos e Reflexões

A busca do magis: um diálogo entre Paulo Freire e Inácio de Loyola

Por uma educação libertadora, em que o educando deixe o papel de mero espectador para assumir o papel de recriador do mundo

 

Gabriel Vilardi, SJ*

Recentemente uma professora de Rondônia foi afastada da escola pública onde lecionava, localizada na comunidade ribeirinha de Nazaré, acusada de “insistir na temática indígena”. Márcia Nunes Maciel, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pertencente ao povo Mura, certamente incomodou e por decisão dos “de cima”, segundo a direção da escola, foi tirada do meio do caminho.

Essa estarrecedora notícia coloca algumas inadiáveis questões: qual tipo de educação se sonha para o país? Uma educação que garanta a ordem e impulsione o progresso, como estampa o lema do atual governo? Não se deveria esperar muito de quem se elegeu tendo como principal bandeira, na área da educação, o famigerado projeto “escola sem partido”. Objetivo? Amordaçar e controlar os já desvalorizados professores para impedir uma nunca comprovada “doutrinação comunista”. Como em 1964, as velhas alucinações estão sempre à espreita…

A falta de uma proposta consistente é tão evidente que, em menos de quatro anos, está-se no quarto ministro da educação. Dentre as decisões tomadas pelo Ministério pode-se citar o corte de verbas das universidades federais, a eliminação de bolsas de pesquisa da Capes/CNPQ e a interferência na elaboração da prova do Enem. Não satisfeito, o atual ministro afirmou que a universidade não deve ser para todos e atacou a inclusão dos alunos com deficiência no sistema educacional.

Resta saber: ordem de quem e progresso para quem? A reposta encontra-se na tentativa do governo federal de substituir o patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Aquele que, alguns meses antes do golpe civil-militar de 1964, assumiu o cargo de coordenador do Programa Nacional de Alfabetização. Ora, diante de tantas mazelas na educação pública, por que escolher o educador popular como alvo? Trata-se da incapacidade de formular uma proposta substancial ou de vontade deliberada de enterrar os avanços já conquistados?

Uma rápida análise de suas principais ideias permite compreender o horror que deve perpassar os atuais dirigentes nacionais, servidores da sempre mesma elite que controla o poder. Na sua magistral obra, Pedagogia do oprimido, o pensador denuncia a educação bancária que pretende condicionar a interpretação da realidade e domesticar as consciências dos educandos, mantendo-os anestesiados e em um imobilismo confortável.

Essa mesma “educação técnica” em que os alunos devem receber, obedientemente (ordem), aquilo que lhes é dado pelo mestre-Estado, que pretende “qualificá-los” segundo as demandas do mercado de trabalho (progresso). Não passa, pois, de um modelo que almeja introjetar uma passividade-ingênua nos educandos, cuidando para que não se favoreça o exercício perigoso da consciência crítica.

Nesse sentido, o sistema educacional está construído para manter o status quo, preparando indivíduos que perdem o senso de pertença social e passam a pensar apenas no próprio sucesso e enriquecimento pessoal. Ensina-se a enxergar a si próprio e aos demais oprimidos como casos particulares, ou seja, como fracassos (patologias) de uma sociedade perfeita e em boas condições. De modo algum se constata tratar-se de um problema social fruto de injustiças sistêmicas e estruturais.

Assim como Freire, Santo Inácio de Loyola também fez uma experiência de aprendizado humano-espiritual na liberdade e no amor, atravessando um longo e desafiador processo de autoconhecimento e busca do Senhor. O fundador da Companhia de Jesus sentiu-se tão amparado ao ponto de afirmar que “Deus se comportava com ele como um professor se comporta com seu pequeno aluno: ensinando-o” (Autobiografia n. 27).

Para que o caminho espiritual seja trilhado com grande “ânimo e generosidade”, o jesuíta adverte que o papel do acompanhante nos Exercícios Espirituais deve ser discreto e apostar na liberdade daquele que vive a experiência, deixando “o Criador agir imediatamente com a criatura e a criatura com seu Criador e Senhor” (EE 15). De outro modo, a pedagogia da interioridade apresentada pelo Peregrino confia no protagonismo do Espírito, pretendendo evitar todo tipo de tutela paternalista ou condicionamento daquele que dá os Exercícios.

Inácio desenvolveu o seu itinerário a partir da própria experiência pessoal de conversão, incentivando a aplicar suas orientações “tanto quanto” ajudassem nas situações concretas. Um homem de profundos desejos que soube cultivar a paciência histórica e colocar os meios para a encarnação da vontade de Deus. Em consonância com a sabedoria freireana, o aprendiz de Loyola convenceu-se que “não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2).

Ainda que as forças político-econômicas não cessem de trabalhar para controlar a educação e os demais setores livres da sociedade, outro amanhã é possível. Um amanhã que se inicia hoje, porque alguns tiveram a coragem de clamar pela libertação no ontem da história. E Paulo Freire, pensador nordestino, vindo da periferia do Brasil foi um desses que ousou sonhar com uma educação popular libertadora.

Uma proposta educativa diversificada e dotada da mesma flexibilidade apontada por Santo Inácio, nas Constituições da ordem dos jesuítas, em que se adapte às circunstâncias de pessoas, tempos e lugares. Nessa educação libertadora, o educando deixa o papel de mero espectador para assumir o de recriador do mundo. Um pensar que abandona a torre de marfim da academia para se inserir em um contexto histórico, com a capacidade de questionar o mundo e reinventar as relações.

Segundo o pedagogo pernambucano, a vocação ontológica do ser humano é “ser mais”: mais humano, mais livre, mais consciente. O fato de ser inacabado e incompleto, como aponta o filósofo Merleau-Ponty, permite que a sua (re)construção aconteça em permanente tensão e movimento. Nessa mesma esteira, também para o Peregrino de Loyola, o homem é constantemente criado por Deus e deve buscar aquilo que mais o conduz para a sua realização existencial, o magis. Uma abertura que rompe com qualquer mediocridade e conformismo fatalista, comprometendo-se com um futuro cheio de esperança.

Para esses tempos sombrios, uma mudança profunda impõe-se com urgência aos homens e mulheres de boa vontade. Uma revolução da ternura e do cuidado, principalmente, com os mais vulnerabilizados para que se possa viver uma sociedade fundada na amizade social, como exorta o papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti, sem medo de encontrar um Estranho no meio do caminho. Desse contato despretensioso pode-se deixar aflorar o desejo mais profundo para amar e servir uns aos outros, conscientes de que a libertação virá dos marginalizados esquecidos e das periferias empobrecidas, não do exterior cultuado, dos grandes centros enriquecidos ou da intelectualidade erudita.

Muitos são os que ousaram resistir à tirania! Entre eles, os povos originários estão sendo impiedosamente crucificados. Mesmo perseguidos e massacrados ao longo dos séculos de colonização de seu território, os sobreviventes teimam em não desaparecer. Superaram as guerras e as doenças, o desmatamento e os garimpos ilegais, as queimadas e os tiros dos jagunços, as expulsões de suas terras e as obras faraônicas dos militares, a intolerância religiosa e o “progresso irracional”.

Existem como profecia de uma outra possibilidade de viver, o bem viver. A vida integrada à Casa Comum. O cuidado com as crianças, o respeito aos anciãos, a partilha dos bens e alimentos. Os cantos e danças, os mitos e rituais, os remédios naturais e as curas espirituais. Enfim, a liberdade de serem: um verdadeiro magis, em que o melhor de si pode florescer dentro de uma existência plena de sentido.

Assim, o desafio que se impõe é buscar e encontrar a vontade comum de uma sociedade que compreende seu magis voltado para a dignidade da pessoa humana. É imprescindível lembrar-se de que antes do Brasil da coroa e do capital existia o Brasil do cocar. Talvez os verdadeiros donos dessas terras possam finalmente fazer parte da reconstrução do país, tão dividido e polarizado. Afinal, não terão já os indígenas feito a revolução que Paulo Freire tanto lutou: a descoberta do saber na busca inquieta do mundo, com o mundo e com os outros?

*Gabriel Vilardi, é jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifício Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e graduando em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). E-mail: [email protected]

 

Fonte: Portal Dom Total

 

Foto: legenda/crédito – Celebração e cortejo em defesa da educação e do legado de Paulo Freire, em comemoração aos seu centenário, em Belém do Pará (Brenda Balieiro/Fotos Públicas)

 

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