por Marcos Aurélio dos Santos*
“Vosso ouro e vossa prata, todos estão oxidados. E a ferrugem deles testemunhará contra vós e, assim como o fogo, vos devorará a carne. Tendes acumulado bens demais nestes últimos tempos. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que vós, desonestamente, deixastes de pagar está clamando por justiça; e tais clamores chegaram aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra, satisfazendo todos os vossos desejos, e tendes comido até vos fartardes, como em dias de festa. Tiago 5: 3-5).
A Bíblia é um livro para o povo. Não deve ser lida com a intenção de descobrir enigmas, nem para receber respostas de Deus para nossos problemas financeiros, nem para conhecer o tamanho da “nossa bênção”, nem tão pouco para ser um manual doutrinário-legalista pautado em dogmas, códigos e ritos. A Bíblia deve ser lida a partir da vida, da realidade das pessoas, de seu contexto histórico e das histórias de nossos dias. A Bíblia é a revelação de Deus para humanidade, que revela o Deus Javé, o Deus libertador de amor e justiça. Nossa leitura da bíblia deve ser comunitária e libertadora.
Em sua carta direcionada às comunidades cristãs de sua época, Tiago, chamado de “O Santo” por ter uma liderança com traços sociais na comunidade de Jerusalém, denuncia a exploração do trabalho escravo. Com pagamento de salário injusto aos trabalhadores, na busca de mão de obra barata, os senhores do campo e comerciantes acumularam para si riquezas. Associado a esta exploração de trabalho escravo, o estado em conluio com o sinédrio também cobrava dos trabalhadores taxas abusivas de impostos que chegavam a 50% sobre os ganhos e bens das famílias pobres. O contexto no qual Tiago escreve sua carta é de uma profunda desigualdade social onde os mais pobres sofriam sob opressão dos poderes dominantes instalados nos sistemas religioso, político e econômico centrados no templo de Jerusalém.
A denúncia profética de Tiago não se dava por um acaso. Havia um sério motivo. Os celeiros dos patrões opressores estavam cheios e seus campos verdes e fartos, seus rebanhos eram de perder de vista, os comerciantes aumentavam seus bens embutindo grandes lucros nas mercadorias, enquanto isso, faltava comida na mesa do trabalhador pobre, terra para plantar, casa para morar. Um dia sem salário para um trabalhador era extremamente grave pois não tinham outro meio de sustento. Os trabalhadores erem em sua maioria camponeses.
Havia um contexto de desigualdade. A profecia apontava para uma lógica de exploração de mercado e do trabalho escravo. Uma riqueza que gerava pobreza favorecendo mais e mais os senhores do agronegócio daquela época. Um modelo econômico-opressor não muito diferente de nossos dias onde na América Latina por exemplo, a concentração de renda está nas mãos de uma minoria de empresários ricos, em detrimento de milhões de explorados, empobrecidos e miseráveis.
Tiago não usa o termo capitalismo-neoliberal em sua carta pois nem se usava tal termo naquela época. Mas em seu tempo como podemos perceber de forma clara em sua carta, isso já acontecia na prática. A ação exploratória e opressora dos patrões junto aos trabalhadores como a concentração de renda nas mãos de uma minoria de ricos, caracterizava o desejo de acumulo de bens. Esse acúmulo de riquezas não se dava pelo esforço e inteligência dos patrões ou por herança como alguns pensam, nem por bênção divina concedida por meio de sacrifícios, nem por sorte, mas pela exploração contínua da mão de obra escrava dos pequenos camponeses oprimidos.
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As palavras de ânimo de Tiago aos trabalhadores nesta passagem são de libertação. Os trabalhadores em sua condição de explorados clama ao Senhor dos Exércitos. O Deus dos oprimidos, Deus de amor e justiça. Esse clamor em meio ao sofrimento chega aos ouvidos de Javé. Ele ouve! A profecia foi direcionada aos ricos opressores. Parafraseando: “Parem de exploração! Deus ouviu o clamor dos seus trabalhadores”! A palavra profética da carta de Tiago tem como objetivo animar os trabalhadores em suas lutas por condições dignas de trabalho e salário justo. Não deveriam esmorecer, mas levantar-se e lutar. Deus exige justiça e um ato de dignidade aos trabalhadores. “Pois o trabalhador é digno do seu salário” (Lucas: 10.7).
Já está em vigor a retirada dos direitos dos trabalhadores conquistados por mais de 80 anos. Um retrocesso! A CLT foi apunhalada com um duro golpe. Os senhores do agronegócio, das indústrias, das multinacionais vibram por saber que poderão acumular mais e mais com as novas regras da reforma trabalhista. Dentre elas está o fim dos acordos coletivos; do salário mínimo; da jornada de 8 horas de trabalho que se estende até 12 horas; a escravização do trabalhador rural; da proteção das mulheres gravidas em lugares insalubres e da proteção do trabalhador em caso de processos judiciais pelos quais eles vão ter que pagar. Os trabalhadores e trabalhadoras pobres serão os mais afetados. Sofrerão a pena de ter que viver com um salário abaixo do mínimo. Com a nova reforma, caminha-se de maneira drástica para um profundo aumento da exploração de mão de obra barata, retorno do trabalho escravo, aumento da fome e pobreza e perda de direitos trabalhistas conquistados nos últimos anos.
Vivemos em um contexto e época diferentes do tempo de Tiago. Contudo podemos perceber que a desigualdade gerada por meio da exploração e opressão aos trabalhadores são bastantes semelhantes. É a mesma lógica capitalista, que exalta o dinheiro em detrimento da exploração e sofrimento das pessoas. Que nesses dias de aflição e dor, o Deus da Justiça possa ouvir o clamor dos nossos trabalhadores e trabalhadoras, que eles possam se levantar contra os desmontes dos seus direitos e lutar. Não devem desanimar, ao contrário, continuar confiando no Deus libertador que cuida de todos nós
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Texto de Marcos Aurélio dos Santos, texto publicado na revista Por Trás da Palavra do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI).
Ilustração de capa: Vini Oliveira
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