Com o tema Mulheres e Profetismo no Primeiro Testamento, o CEBI Planalto organizou a Escola Bíblica Flor de Piqui. Confira as reflexões trazidas no encontro:
Boa meditação!
- Iniciando a conversa:
“…O profetismo é também o anúncio da esperança, da utopia que buscamos e que não nos deixa desanimar, porque temos a promessa o futuro, assim como já conduziu os passos dos profetas e pais que nos precederam na fé.” (CAVALCANTE, 1987)
Ao falar em profecia, profetas e profetismo imediatamente pensamos nos grandes nomes de Amós, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Elias; todos homens grandiosos que fazem parte do cenário profético das Escrituras Sagradas. Porém se olharmos atentamente os textos bíblicos numa perspectiva feminina veremos que, no percurso do agir profético, houve, como ainda há em nossos dias, a participação insubstituível da mulher.
No entanto, se a leitura bíblica que fazemos ainda é carregada de pré-conceitos e estereótipos masculinos, as mulheres profetisas não serão encontradas facilmente, mesmo por que a tradição judaico-cristã nunca fez questão de reconhecer esta participação na história da salvação.
Mesmo hoje, parece que a lista de mulheres mártires e profetisas lembradas em nossas liturgias não enche uma página. Será que as mulheres não participam ou será que continuam propositalmente esquecidas?
Hoje há milhares de mulheres, judias, protestantes e católicas que procuram fazer uma leitura bíblica no contexto do povo, enfatizando o papel das mulheres e de outros marginalizados na Bíblia.
No entanto, a força da visão patriarcal da religião é tão universal, que milhares de mulheres ainda acreditam que Deus (um puro espírito sem gênero) é masculino e por isso sempre escolheu homens e continuará a escolhe-los como profetas, sacerdotes e governantes do povo por serem “melhores e moralmente mais fortes do que as mulheres”.
Mas isso não precisa continuar sendo assim, uma visão histórica e socialmente construída leva quase o mesmo tempo para ser desconstruída, é o que as mulheres, profetisas de nosso tempo estão tentando forjar. É o que nos mostra a afirmação de uma delas, num ensaio sobre mulheres na Bíblia:
“As biblistas feministas, em geral, são multidisciplinares em sua abordagem do texto bíblico. Elas trabalham com a análise literária, a antropologia, a sociologia, a lingüística, a filosofia e a psicologia. A interligação de todos esses campos permite penetrar o texto em seu contexto de povo de Deus num mundo abrangente. Essa leitura é importante para todas as religiões.” (Ana Flora Anderson, s/d)
Profetismo feminino
Ao falarmos de profetismo feminino, logo de cara nos deparamos com o que alguns autores/as denominam ocultamento e nós concordamos com eles. Em nossas leituras e análises, observamos que as mulheres aparecem muito nos textos, mas em geral, mesmo quando sua presença é importante, seu nome é substituído ou acompanhado por sua função familiar. A irmã de Moisés, a mãe dos macabeus, a mulher do profeta; e hoje ainda- a mãe do padre Josimo, as mães da praça de maio, as margaridas, a viúva do Chico Mendes, etc.
É por essas e outras que necessitamos de um olhar atento, vigilante, quando quisermos descobrir onde há mulheres atuando, fazendo, criando, lutando e proferindo uma palavra profética na história.
“Se houve todo um processo de ocultamento das mulheres por parte dos que escreveram a Bíblia, isso nos leva a uma leitura mais crítica. Lá onde alguma mulher aparece explicitamente numa posição louvável, especialmente se ela recebe o título de “profetisa” ou “juíza”, é porque sua liderança ultrapassa todas as barreiras patriarcais e se impôs como impossível de ser omitida” (Cavalcanti,1987).
2. Profetisas do Primeiro Testamento
Miriam ( Ex 15,20-21;Mq 6,4; Nm 12)
A Bíblia cita inegavelmente a profetisa Miriam como uma das envolvidas no projeto de libertação dos hebreus junto com Aarão e Moisés. O cântico de Miriam é um dos mais antigos escritos da Bíblia, o que denota que desde o começo houve a presença de mulheres na história de Israel acontecida e também na história escrita.
Miriam é aquela que puxa o cordão das mulheres, toca tamborim, dança e canta em homenagem a Javé, o libertador. Obviamente o texto menciona seu parentesco com Aarão, mostrando uma forma de não deixar a liderança de uma mulher sobressair sozinha. No entanto em Miquéias 6,4, Miriam aparece em pé de igualdade com Moisés, mas no capitulo 12 dos Números, ela é punida com a lepra por contestar Moises e só é curada com a mediação do mesmo.
Apesar das tentativas de diminuir sua importância, uma leitura do ponto de vista da mulher coloca Miriam em destaque e seu profetismo consiste na liderança das mulheres, no louvor e reconhecimento ao Deus que liberta e quer vida digna para todos e todas.
Débora (Jz 4-5)
Num momento de fraqueza e dispersão das tribos, a juíza Débora convoca o chefe Barac e todos os guerreiros para lutar em defesa do povo e sob a proteção de Javé. O texto fantástico de Juízes 4 deixa claro o brilho de Débora, assim como o de Jael em oposição à fraqueza masculina revelada em Barac e Sísara.
É esse texto que ressalta o profetismo de Débora e seu papel: despertar as lideranças adormecidas, convocar as tribos para a união, levantar o ânimo de todos e sobretudo convocar à fé no Deus libertador. Essa é fé cantada em ritmo de festa e louvor, terminando com um grito confiante:
“Aqueles que te amam, Javé, que eles sejam como o sol quando se levanta em sua força”(jz 5,31)
Mais tarde, a carta aos Hebreus (11,33) fará menção ao tempo dos juízes, citando vários e até o covarde Barac,mas omite Débora. É preciso que as mulheres e também os homens de hoje desconstruam essas ideias de exclusão ou diminuição do papel da mulher contidas na Bíblia, analisando o contexto do escrito e pondo as cartas na mesa.
Hulda (2 Rs 22,14-20)
No tempo da reforma de Josias, a infidelidade a Javé e a idolatria se tornam um perigo iminente, Josias pede seus homens de confiança para consultarem a Javé, no entanto eles se dirigem a Hulda, que prediz a desgraça de Jerusalém.
Sua função é comparada a de muitos profetas que são consultados pelos reis em momentos difíceis e decisivos. Seu profetismo consiste em alertar a consciência de fé do povo, e tal consciência emerge, com o mesmo grau de agudeza, entre homens e mulheres.
Agar (Gn 16; 21,8-21)
Desculpe-nos os biblistas tradicionais se não nos reportamos a matriarca Sara e sim a Agar. Acreditamos que devemos isso a ela e a todas as mulheres negras, escravizadas e espoliadas de nossa história. Os dois textos apresentam a história de Agar e seu filho Ismael, que mesmo diferentes entre si, revelam a resistência de Agar a submeter-se a uma situação de injustiça, na qual ela reivindica os direitos de seu filho, o primogênito de Abraão.
A história de Agar entra em sintonia com a história de milhares de mulheres, mães solteiras ou abandonadas pelos maridos, tendo que arcar sozinhas com a criação dos filhos. E o incrível é que vendo a história por essa ótica, Abraão, nosso pai na fé, fica em maus lençóis, foi omisso, deixou que seu filho fosse embora, viver em condições difíceis no deserto com sua mãe, tendo na casa do pai todo o conforto.
Porém Javé, que é o Deus da vida, recompensa Agar a ela se manifestando e anunciando a promessa de grande descendência. E ainda que Sara nos pareça vitoriosa, Javé não abandona Agar que foi oprimida, mas cumpre sua promessa, acompanha e protege dos desvarios de sua “senhora”.
Ana ( 1Sm 1, 1-2, 11)
Ana é encarada como a profetisa que inspirou o Magnificat. Sendo estéril, é agraciada por Javé com um filho, que consagra a Deus por toda a vida. Ela, humilhada por Fenena, outra esposa de Elcana, seu marido, representa a grande massa oprimida que não tem voz e nem vez e até o pão lhe é dado com indiferença e desprezo. Mas ela não se deixa subjugar e confia no Deus que dá vida, liberta e faz justiça.
Seu cântico deixa a perspectiva individual de uma mãe que se rejubila com a gestação, e passa ao louvor do Deus cheio de sabedoria e justiça.
Rute e Noemi (livro de Rute)
O livro de Rute não enfoca especificamente o carinho filial de uma nora por sua sogra, mas aborda a questão da terra, da fome e da família de Israel. Duas mulheres em condições peculiares: uma viúva (Noemi) e a outra também viúva e estrangeira (Rute, a moabita). Ambas vão lutar pela sobrevivência numa situação precária na qual fazem valer a lei a seu favor.
O profetismo de Rute e Noemi consiste na afirmação da vida e da posteridade da família e do povo, num contexto de total desesperança.
“Rute, cujo nome significa amiga ou saciada, é o símbolo da mulher por quem o povo renasce, porque sua fé foi agraciada e sua esperança tornou-se fecunda”.
Ester (livro de Ester)
A personagem de Ester surge ligada a um contexto de perigo iminente do extermínio do seu povo. O livro relata o episódio da historia dos judeus em que um alto funcionário da corte do Rei Assuero decreta o extermino dos judeus.
Ester, esposa do rei, de origem judia, expõe sua vida na tentativa de impedir que o decreto fosse cumprido e consegue inverter o processo. Ela representa uma mulher aparentemente frágil, que assume a defesa do povo ameaçado, e para faze-lo convoca todos os seus ao jejum e a união de forças.
Judite (livro de Judite)
Trata-se de uma história fictícia que objetiva restabelecer a fé no Deus que “está conosco” e recuperar a confiança do povo, mantendo-o fiel ao projeto de Javé. Como Jael e Ester, Judite arrisca sua vida e usa seus encantos femininos para cativar e depois trair o general inimigo e assim salvar os filhos e filhas de Israel.
O bonito dessa narrativa é que não há negação da corporeidade feminina, claramente explicita no grau de erotismo e sensualidade presentes no texto. Mas o conteúdo mais profundo da atuação feminina,está no modo como Judite se dirige aos chefes da cidade para dizer-lhes que não se pode tentar a Deus, dando-lhes prazos de intervenção. De Javé só se pode esperar ação livre e gratuita.
Oração e ação caminham juntas no profetismo de Judite, que ora e jejua no tempo da provação e preparação, e canta e dança, enfeita-se e distribui ramos às companheiras para celebrar a vitória e a paz. Como Débora, Miriam e Rute, Judite também nos oferece um cântico de alegria contagiante que enriquece a escritura sagrada, esculpindo nela os contornos de nossa feminilidade.
No momento mais decisivo de sua atuação, sua oração faz lembrar aos homens e mulheres de nossa sofrida América latina que nosso Deus é nossa força, “é o Senhor quem protege o oprimido”:
“Teu poder não está no grande número, nem tua soberania entre os que tem força. És o Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o amparo dos fracos, o protetor dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jt 9,11)
A mãe dos Macabeus
Embora se trate de uma obra edificante, os fatos relatados devem ter algum fundamento histórico e o episódio relativo à mãe dos macabeus não deve ter surgido do nada. O livro refere-se às lutas dos Judeus, liderados por Matatias e seus filhos, especialmente Judas Macabeu, contra os reis selêucidas, que quiseram impor s costumes gregos na Judéia.
No contexto apocalíptico colorido de terror, como se vê pela descrição do martírio dos sete filhos, a figura que mais se sobressai é a da mulher. Seu profetismo marca esse momento de modo especial. Gallazzi afirma que aquela mãe se torna o símbolo “do povo pobre que resiste, recupera sua memória e elabora uma contra-ideologia, que sustenta a resistência e a luta do povo. A mulher ‘produz’ uma nova mística de vida, num momento que reina a morte”.
A profissão de fé daquela mãe corajosa assume uma conotação bem feminina, dirigindo-se a seus filhos na língua de seus pais, exortando-os e animando com ardor viril o seu raciocínio de mulher (2 Mc 7,21). Trata-se de uma confissão de fé explicita no ato criador de Deus que gera os homens através do seio da mulher e cujo poder é capaz de tirar da morte aqueles que foram assim gerados.
Como essa mulher que não tem nome, milhares de mulheres insurgem contra a ideologia vigente sendo protagonistas anônimas contra a violência do opressor que atinge mulheres e crianças indefesas nos conflitos de terra, na guerra urbana do dia-a-dia, nas favelas, becos e guetos de nossa espoliada América Latina.
Mulheres e Profetismo hoje: Para não concluir nossa conversa
Ler a Bíblia na ótica da mulher significa procurar o que cada texto diz às mulheres de hoje, de modo a impugnar qualquer interpretação distorcida pelo machismo. A interpretação da Bíblia sempre foi masculina, pois o masculino era tido como universal.
Mas se a ideia de universal passa pela ótica de que todos somos iguais, embora diferentes, homens e mulheres devem se sentir incomodados cada vez que a leitura da Bíblia conduzir à desigualdades e discriminações de qualquer natureza.
As profetisas de hoje estão saindo do anonimato e rompendo a cadeia da exclusão. Não podem ficar de fora dessa reflexão, as milhares de mulheres que fazem história em nosso continente e no mundo afora, cada uma a seu modo, com sua cultura e expressão, vão rompendo “as algemas”e mostrando a cara e a voz.
Não estamos falando da “revolta dos sutiãs”, mas de mulheres que não aceitam a ditadura da beleza imposta pela mídia e arrebentam as correntes da violência doméstica, do direito de escolha, libertas e provocadoras de mudanças. Estamos falando das” mulheres que assumem a defesa de seu povo com coragem e firmeza( Jz 5, 28-30) e não ficam passivas a esperar os homens voltarem da guerra com os despojos”.
Parece-nos costumeiro ouvir dizer que os profetas estão mudos, ninguém anuncia ou denuncia mais, talvez seja por que a voz dos homens que gritou durante séculos, inclusive abafando a voz das mulheres, esteja enfraquecida pelo egoísmo e falta de partilha na missão profética.
Pare e pense: será que os profetas sumiram ou será que é a vez e a voz das profetisas que estão sobressaindo?
As mães da praça de maio, as quebradeiras de coco babaçu, as rendeiras e doceiras reunidas em cooperativas, Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Maria da Penha, Doroty, as margaridas, as mulheres do MST e de outros movimentos populares, Oneide, Rosa, Ana Maria, Agostinha do Cebi, Tereza Cavalcanti, Inês, Catarina de Sena, Joana d’Arc, Anita Garibaldi, Ana Nere, e as milhares espalhadas por este mundo, incluindo todas as alunas das escolas bíblicas espalhadas pelos cantos desse pais, continuam como Raab, Séfora e Fuah, dentro do contexto de sua feminilidade a gerar vida e vida em abundância para todos e todas.
Referências Bibliográficas:
-
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2001.
BÍBLIA SAGRADA – Ed. Pastoral. São Paulo: Paulus, 2000.
COLEÇÀO: A PALAVRA NA VIDA. Mulher: Fermentando e Gerando Vida.Várias Autoras. nº 121.São Leopoldo,RS: Cebi, 2001.
CAVALCANTI.Tereza M. Mulheres e Profetismo no Antigo Testamento. In: Curso de Verão, Ano II. São Paulo: Paulinas, 1988.
STRÕHER. Marga J. (et al). À Flor da Pele: Ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo,RS: Sinodal, Cebi, Est; 2004.
–
Fonte: Alexandre, Edicarlos, Eliana, Elaine, Jucimar e Maria das Graças, participantes da 1ª Etapa da Escola B. Flor de Pequi/2007