Leia a reflexão sobre Marcos 10:35-45, texto do Ildo Bohn Gass
Boa leitura!
Vamos refletir sobre a conversa entre Jesus e seus discípulos (Marcos 10,36-45), ocorrida após o terceiro anúncio da paixão (Marcos 10,32-35). Este anúncio da paixão está situado no caminho para Jerusalém, o caminho do seguimento (v. 32). É o caminho da diaconia, isto é, do serviço. É o caminho em que Jesus vai abrindo, aos poucos, os olhos dos discípulos ainda cegos. Até que ponto, continuamos cegos em nossos dias, quando sabemos que o pior cego é aquele que não quer enxergar?
A comunidade que é de Jesus não reproduzir as relações deste mundo, que são de luta por poder, riquezas, consumismo e prestígio a qualquer custo. E, para garantir esses privilégios, espalham preconceitos e mentiras, calúnias e intolerâncias, ódio e violência. E isso tudo focado no indivíduo e não em pessoas, satisfazendo interesses individualistas sem se preocupar com a realidade das pessoas mais necessitadas.
A comunidade cristã será expressão das relações do reinado de Deus e semente de uma nova sociedade, somente estabelecendo relações alternativas às do mundo, fundamentadas na acolhida e na verdade, no amor e na paz. Ao lembrar o modo opressivo de os romanos exercerem o poder, Jesus sentencia: “Entre vós não deverá ser assim” (Mc 10,43).
Luta por poder
Depois do segundo anúncio da paixão (Marcos 9,30-32), Jesus já tentara abrir os olhos dos discípulos quanto à forma de exercer o poder, uma vez que a discussão pelo caminho era sobre “qual dentre eles seria o maior”. “Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último e aquele que serve a todos” (cf. Marcos 9,33-35). No entanto, parece que o ensino de Jesus não teve o efeito esperado. É que a questão do poder privilégio volta novamente à tona.
Agora, Tiago e João disputam os melhores cargos no reinado de Jesus (Marcos 10,35-37). E são eles mesmos que vão pleitear as melhores posições junto ao líder. Diferente é em Mateus, onde a mãe dos filhos de Zebedeu, acompanhada pelos dois jovens, vem fazer lobby junto a Jesus, a fim de que conceda os cargos mais importantes a eles. Ela imagina que sua pressão em favor dos filhos sensibilize o coração de Jesus.
No texto de hoje, em resposta a Tiago e João, Jesus diz que até podem beber do mesmo cálice que ele beber e receber o mesmo batismo que ele receber, isto é, sofrer morte violenta por fidelidade ao projeto do Pai. No entanto, na proposta de Jesus não há espaço para privilégios, para a desigualdade (Marcos 10,38-40). Sua política é igualitária.
E nós, como exercemos a autoridade em nossas comunidades? Como estabelecemos relações de poder quanto às questões étnicas e de gênero? Também fazemos como os filhos de Zebedeu?
Autoridade que serve
A partir dali, Jesus novamente ensina qual é seu projeto de poder. Primeiro, refere-se à forma como não devemos exercer a autoridade. E o faz, lembrando como os romanos, “aqueles que vemos governar as nações”, exerciam o poder. Eles “oprimem e tiranizam” os povos que subjugam. Os poderosos daquele mundo alcançavam a paz através da vitória, impondo a derrota com violência a quem resistisse contra a sua tirania. E eles chamavam a isso de pax romana. A paz de Jesus não é a da vitória pela violência, mas é a paz fruto da justiça. É por isso que ele diz: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. Não vo-la dou como o mundo a dá” (João 14,27). Em consequência, a comunidade que quer ser semente de uma nova sociedade não pode reproduzir as relações deste mundo: “Entre vós não deverá ser assim” (Marcos 10,43).
Em segundo lugar, Jesus faz a sua proposta: “aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor; e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos” (Marcos 10,43-44). Para Jesus, o poder é diaconia, é serviço. E ele deu o exemplo, pois não veio para ser servido, mas para servir. Veio para dar a sua vida em resgate de muitos (Marcos 10,45). Ele é o messias diácono, servidor. No evangelho segundo João, é na narrativa do lava-pés que Jesus ensina a respeito de como viver relações igualitárias na comunidade (João 13,1-17), de modo que ela seja luz para mundo e sal para a terra (Mateus 5,13-16).
Que, tal como Jesus aprendeu de sua mãe, também nós aprendamos a dizer com Maria de Nazaré: “Eis aqui a serva do Senhor” (Lucas 1,38).
Concluindo e ampliando
O problema não é o poder em si, mas a forma como o exercemos. Assim também é com a riqueza criada por Deus. A questão é o que fazemos com ela, se a acumulamos ou partilhamos. Jesus chamava a riqueza acumulada de “tesouro da terra”, ao passo que chamava a riqueza repartida de “tesouro do céu” (cf. Mateus 6,19-20).
O “poder sobre”, o poder vertical ou de cima para baixo é um poder que oprime, faz sofrer e serve a poucos. É autoritário. O que Jesus condena é justamente essa forma de exercício da autoridade. Ao passo que o “poder com”, o poder horizontal ou de braços dados em comunhão é uma autoridade exercida em parceria e serve à maioria. É uma autoridade participativa e democrática. E somente pode viver essa autoridade quem experimenta o “poder de dentro”, do interior, que empodera a autonomia, a liberdade de quem o exerce.
Mais que dar a vida por Jesus, ser discípulo e discípula dele é, como ele, doar-se para que todas as pessoas tenham vida, e vida em abundância. Ser discípulo é ser como o cego Bartimeu. De um lado, é buscar ardentemente a superação da cegueira da mente e do coração na luta por poder. De outro, enxergando como Bartimeu, é buscar clareza a respeito do projeto de Jesus, segui-lo pelo caminho e servir, isto é, de cego a discípulo (Marcos 10,46-52).
A partir da prática de Jesus em relação ao exercício do poder, podemos ampliar sua dimensão de serviço. As nossas comunidades continuam a ser chamadas a viver a diaconia, não somente quanto às relações de poder, mas também no serviço a quem mais precisa e sofre discriminação em nosso meio. É o serviço às pessoas que não têm direito à liberdade nem à saúde, ou que não têm o que comer nem beber, com que se vestir ou onde morar e trabalhar com dignidade (cf. Mateus 25,35-36). Vivendo relações de serviço, já antecipamos, em nossas comunidades, o resgate da democracia, o outro mundo possível e urgentemente necessário, a fim de evitar o autoritarismo que leva à barbárie.