comentário de Adroaldo Palaoro por IHU Online*
“Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros que depositaram no cofre” (Mc 12,43)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 32° Domingo do Tempo Comum – Ciclo B (11/10/2018) que corresponde ao texto bíblico de Marcos 12,38-44.
Encontramo-nos nos últimos versículos do cap. 12 de Marcos; só temos, pela frente, o discurso escatológico do cap. 13 e o relato pascal. Jesus, mais uma vez nos ensina. Embora o relato deste domingo se reduz a poucos versículos, tem uma profundidade enorme. É o melhor resumo que se pode fazer do evangelho. A simplicidade do relato esconde a mensagem mais profunda de Jesus: toda a parafernália religiosa externa não tem nenhum valor espiritual; o único que importa é o interior de cada pessoa.
Vivemos a cultura da superficialidade e da aparência e perdemos o caminho do coração; carecemos de interioridade, carecemos de humanidade.
Este simples relato deixa clara a crítica de Jesus à religião de seu tempo (e a de todos os tempos). N’Ele destaca-se a diferença entre religião e religiosidade, entre cumprimento de normas e vivência interior, entre os ritos programados e a experiência de Deus. Ainda não aprendemos a lição. Hoje continuamos dando mais importância ao externo que a uma atitude interior. À religião continua interessando-lhe mais que sejamos fiéis à doutrina, aos ritos e às normas. E a verdade é que nós mesmos continuamos dependentes da vaidade e da aparência e não de atitude vital, de onde flui nossa vida.
A crítica de Jesus aos escribas é dura, pois desmascara a falsa religiosidade deles. Em vez de orientar o povo a buscar a glória de Deus, atraem a atenção das pessoas para si mesmos, buscando sua própria honra.
Mas há algo que, sem dúvida, dói mais ainda em Jesus que este comportamento fantasioso e pueril de ser contemplados, saudados e reverenciados. Enquanto aparentam uma piedade profunda em suas longas orações em público, aproveitam-se de seu prestígio religioso para viver à custa das viúvas, as pessoas mais fracas e indefesas de Israel segundo a tradição bíblica.
É inútil querer fazer bela figura diante de Deus, pensando que Ele se deixa impressionar pelas grandezas humanas. O Reino de Deus subverte as categorias humanas. Assim, o que é grande aos olhos humanos, é desprezível para Deus. E vice-versa: o que o mundo desvaloriza, encontra valor aos olhos de Deus.
Mas Jesus, que acaba de criticar tão duramente os “controladores” do Templo e da Religião, descobre também a riqueza espiritual que uma pobre viúva manifesta, e reconhece que a maneira dela atuar deve ser referência para todos, porque é reflexo de sua atitude para com Deus. Distante de todo cálculo mesquinho, ela se deixa levar pelos sentimentos mais nobres. Jesus descobriu naquela mulher uma atitude esplêndida: o comportamento de alguém que espera tudo de Deus.
Precisamente, esta viúva vai des-velar (tirar o véu) da religião corrupta dos dirigentes religiosos. Seu gesto passou desapercebido a todos, mas tocou a sensibilidade de Jesus. O Evangelho nos diz muito pouco sobre ela; diz-nos somente que, enquanto para muitos olhos ela passa desapercebida, o olhar de Jesus, pelo contrário, a descobre e a eleva.
Encontramo-nos aqui diante de uma mulher sem nome, não sabemos se jovem ou idosa, somente sabemos que era viúva, que viveu perdas. E Jesus nos faz olhar a magnitude, a generosidade desta mulher em meio à sua pobreza e como ela se envolve no dom da entrega. Seu atrevido gesto torna-a aberta, vazia e disponível para deixar-se conduzir por uma Vida maior, para confiar na bondade do Mistério.
Não é uma mulher que anda escondida no anonimato, para que ninguém a veja colocar sua oferenda. Não está se esquivando do olhar dos outros. Não lhe dá vergonha colocar pouco no cofre, nem se sente grandiosa por depositar tudo o que tinha.
Esta viúva não buscou honras nem prestígio algum; age de maneira calada e humilde. Não pensa em explorar ninguém; pelo contrário, dá tudo o que tem porque outros podem precisar. Segundo Jesus, ela deu mais que todos, pois não dá do que lhe sobrava, mas “ofereceu tudo o que tinha para viver”.
“Muitos ricos depositavam grandes quantias”. As moedas eram depositadas em uma espécie de funis enormes, colocados ao longo do muro do Templo. A ampla boca do funil de bronze permitia lançar as moedas de uma certa distância, fazendo muito ruído ao caírem. Os ricos podiam ouvir, com orgulho, o som de suas moedas ao se chocarem com o metal no interior do cofre. O que a viúva depositou foram duas moedinhas do mais baixo valor da época e que não emitiam sons ao passarem pela boca do funil.
Era preciso ter um ouvido bem apurado para descobrir esse gesto silencioso de uma mulher que vive como oferenda, porque não retém nada para si. Mas Jesus, com sua sensibilidade aguçada, chama os seus discípulos para observá-la, pois dificilmente encontrarão no ambiente do Templo um coração mais generoso e mais solidário com os necessitados. Gente simples que poderá ensiná-los a viver o Evangelho.
Por que o gesto da viúva chamou tanto a atenção de Jesus? É que Ele tem outra lógica para olhar os acontecimentos, não tem uma visão gananciosa, nem mercantilista. Ele vê além das aparências e descobre a generosidade e o desprendimento dessa pobre mulher que entrega tudo o que tinha.
Jesus fica impactado pela gratuidade do gesto: ela tinha entre as mãos duas moedas e não duvidou, nem calculou quanto lhe dariam a prazo fixo se investisse em um seguro de velhice ou na poupança da Caixa. Pareceu-lhe que era melhor investir tudo em uma só cartada, a da entrega, a da totalidade, e toda ela estava inteira em sua eleição tão arriscada. Toma a decisão temerária de depositar no cofre do templo, e de uma só vez, as duas moedinhas que era tudo o que tinha para viver.
Dizia S. Ambrósio: “Deus não se fixa tanto no que damos, quanto no que reservamos para nós”. Aquilo que se guarda acaba se perdendo. A viúva, ao renunciar a menor segurança, manifesta a verdadeira grandeza. Oferecendo aquilo que lhe restava para viver, a mulher colocava-se toda nas mãos do Pai e fazia sua vida depender totalmente d’Ele. Reconhecia que tudo, em sua vida, era dom de Deus. Por isso, com toda a liberdade e sem a ânsia de possuir, foi capaz de arriscar tudo. Esta é a oferta que tem valor diante de Deus.
“Ofereceu tudo aquilo que possuía para viver”. Para captar toda a força desta frase final, temos que levar em conta que em grego “bios” significa não só vida, mas também modo de vida, recursos, sustento; seria o conjunto de bens imprescindíveis para a subsistência. Nós temos uma palavra que poderia se aproximar bastante da expressão grega: “víveres” ou “sustento”. Deu tudo o que constituía sua possibilidade de viver. Equivaleria a pôr sua vida nas mãos de Deus.
Eis a questão: passar de nossas mãos possessivas às mãos que se estendem para oferecer e partilhar. Aquilo ao qual estamos apegados nos ata, e o que retemos nos possui. Para viver uma sadia relação com os bens precisamos ser capazes de tomar, de abraçar e de soltar. O que nos impede estar disponíveis para Deus vai sendo afastado, e pouco a pouco vamos nos aproximando cada vez mais de nosso centro, ou seja, o nosso coração, onde as moedas não fazem barulho; são moedas cunhadas no silêncio do encontro com Aquele que é fonte de todas as nossas riquezas; e é no silêncio que essas moedas se expressam através dos gestos despojados do serviço, do compromisso e da partilha…
E, assim, a vida se faz uma oferenda contínua.
Para meditar na oração
Esta cena tão simples do Evangelho nos desafia mais uma vez, e nos vemos retratado nela; simplesmente temos que nos deixar interpelar pelo relato e tentar descobrir se nossa atitude de vida está mais próxima da dos escribas ou mais próxima daquela da viúva.
* O que prevalece em mim: uma religião de aparência, de ritualismos, de moralismos (própria dos doutores da lei) ou uma religião do coração (simplicidade, generosidade, despojamento…) própria da viúva?
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Publicado originalmente no site do Instituto Humanitas.