Naqueles dias os discípulos amargavam a dor insuportável da perda de Jesus. Com a morte do Nazareno desapareceu não somente o mestre querido que lhes deu novo sentido à vida, esfacelou-se também o sonho de um reino em que seriam, junto com o cristo por eles idealizado, a nova aristocracia da Judeia. Agora, consumidos pela tristeza, alimentada de frustração profunda, os discípulos de Jesus se dispersaram, perderam completamente o rumo de uma estrada que, em sua perspectiva messiânica, sabiam onde começou e onde haveria de terminar. Essa certeza, porém, estava completamente destruída. O texto de Lucas no capítulo 24 do seu evangelho descreve, com detalhes impressionantes, o reencontro daqueles discípulos com o sentido do Caminho, enquanto rumavam para Emaús.
Naquele mesmo dia, dois dos seguidores de Jesus estavam indo para um povoado chamado Emaús, que fica a mais ou menos dez quilômetros de Jerusalém. Eles estavam conversando a respeito de tudo o que havia acontecido. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus chegou perto e começou a caminhar com eles, mas alguma coisa não deixou que eles o reconhecessem. Então Jesus perguntou: — O que é que vocês estão conversando pelo caminho?
Eles pararam, com um jeito triste, e um deles, chamado Cleopas, disse: — Será que você é o único morador de Jerusalém que não sabe o que aconteceu lá, nestes últimos dias?
— O que foi? — perguntou ele.
A relação de Jesus com seus discípulos desde sempre se caracterizou pelo exemplo como elemento pedagógico gerador de transformação da mente de seus seguidores. Isso é impossível de ser feito à distância e ele sabia disso. Razão porque o mestre desaparecido “chega perto e começa a caminhar Com eles.” Ao fazê-lo, gera naqueles discípulos a percepção de companheirismo e de pertencimento. Mostra que não estão sozinhos na caminhada. Existe quem se interessa pela história de suas vidas em que, durante três anos, investiram todas as suas esperanças.
Era preciso sinalizar a história com outro mapa, diferente dos labirintos mortíferos da tradição religiosa vigente. Por isso, um novo gps foi ativado no caminho. A pergunta se torna o instrumento dialógico para o destravamento daquelas mentes capturadas pela tristeza e pela desesperança. “O que foi?” provoca o Nazareno. O início desde diálogo abrirá uma nova e surpreendente trilha ao longo da caminhada. Enquanto isso, ouçamos o testemunho da comunidade lucana um pouco mais…
Eles responderam:
— O que aconteceu com Jesus de Nazaré. Esse homem era profeta e, para Deus e para todo o povo, ele era poderoso em atos e palavras. Os chefes dos sacerdotes e os nossos líderes o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu. Algumas mulheres do nosso grupo nos deixaram espantados, pois foram de madrugada ao túmulo e não encontraram o corpo dele. Voltaram dizendo que viram anjos e que estes afirmaram que ele está vivo. Alguns do nosso grupo foram ao túmulo e viram que realmente aconteceu o que as mulheres disseram, mas não viram Jesus.
Essa porção do capítulo 24 de Lucas é muito especial para tornar a leitura da Bíblia relevante nos contextos de caos e desesperanças pelos quais estamos atravessando. Com efeito, quando o texto diz que as mulheres viram anjos e experienciaram a ressurreição, a comunidade lucana nos relembra que a dimensão mística/transcendental da/na vida é essencial para a Leitura Popular da Bíblia que, por sua vez, alimentará a caminhada histórica dos discípulos e das discípulas de Jesus de Nazaré. É impossível dissociar a espiritualidade cristã da existência de um sentido profundo da realidade, em que a presença do ressuscitado nos acompanha e nos ajuda a mapear o caminho, sabendo que as incertezas fazem parte do gps divino, igualmente pedagógico, afim de que que encontremos o rumo certo. A crença no Deus revelado por Jesus desenvolve no discípulo e na discípula, muito mais do certezas e verdades definitivas e este tipo de fé gera neles e nelas a capacidade de fazer as perguntas necessárias para criar consensos que resultem no bem viver, nas comunidades de que fazem parte. Perguntar, entender e crer são verbos da pedagogia libertadora no diálogo entre Jesus e seus companheiros a caminho de Emaús..
Então Jesus lhes disse:
— Como vocês demoram a entender e a crer em tudo o que os profetas disseram! Pois era preciso que o Messias sofresse e assim recebesse de Deus toda a glória.
E começou a explicar todas as passagens das Escrituras Sagradas que falavam dele, iniciando com os livros de Moisés e os escritos de todos os Profetas.
Jesus provocou aqueles dois discípulos para a leitura crítica dos textos sagrados e das tradições que, naquele diálogo, foi articulada com a crença na ação histórica de Deus, resgatando a compreensão profética do curso dos acontecimentos porque entender, é racional, é exercício inteligente da busca pela evidência que, num aspecto mais profundo, cognitivo, articula elementos fundamentais da capacidade de compreensão alimentados pela emoção. A emoção também é fonte de inteligência e, é neste campo intuitivo, profundo, que a fé ilumina razão, que a mente se expande e a razão dá sentido à fé. Neste sentido, defendo como argumento teológico, que a inteligência emocional de que somos dotados permitiu aos antigos profetas perceberem um sentido mais profundo do seu contexto cultural e religioso do que apenas o encadeamento histórico dos fatos. Por isso, Jesus trás de volta o mapa tecido pelos profetas, adornado pela tradição, agora reinterpretado pela vida e obra do Messias de Nazaré, afim de que os discípulos do caminho retomassem o projeto de reino de Deus experimentado na Galileia. Quando eles entenderam o sentido e a beleza do mapa da existência mostrado pelo Nazareno, foram libertos dos porões do desespero. A tristeza se transformou na festa da alegria e a esperança fluiu como cachoeira poderosa, antes represada no interior daqueles discípulos. É belo e inspirador o testemunho da comunidade de Lucas:
Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez como quem ia para mais longe. Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: — Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando.
Então Jesus entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Deus. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Jesus. Mas ele desapareceu. Então eles disseram um para o outro: — Não parecia que o nosso coração queimava dentro do peito quando ele nos falava na estrada e nos explicava as Escrituras Sagradas?
Eles se levantaram logo e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os onze apóstolos reunidos com outros seguidores de Jesus. E os apóstolos diziam: — De fato, o Senhor foi ressuscitado e foi visto por Simão!
Então os dois contaram o que havia acontecido na estrada e como tinham reconhecido o Senhor quando ele havia partido o pão.
A história é escrita por gente simples que faz da partilha da vida e do pão elementos poderosos de libertação humana e transformação das suas realidades. Essa é a proposta da pedagogia libertadora do caminho de Emaús, fonte termal de aquecimento do coração e avivamento da mente para transformação do nosso planeta em tabernáculo de acolhimento e proteção da vida criada por Deus.
Lenon Andrade é pastor da Comunidade Batista do Caminho na cidade de Campina Grande /PB e membro do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI /PB).