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Quem são os escribas e fariseus de hoje?

Fazendo ecoar o Dia Internacional da Recordação do Tráfico Negreiro e da sua Abolição, partilhamos o artigo do Professor Paulo Proença sobre “Quem são os escribas e fariseus de hoje?”. Este artigo faz parte do livro “Bem-Aventuradas São as Pessoas Negras – O Sermão do Monte em Perspectiva Afrodescendente”. Adquira clicando abaixo.

Bem-Aventuradas São as Pessoas Negras – O Sermão do Monte em Perspectiva Afrodescendente – CEBI


Escribas e fariseus, condenados por Jesus, tiveram representantes na continuidade da história? Quem os representa, hoje? A história nos ensina que essa organização dos grupos sociais e seus interesses (situação de vida) se reproduziu sempre e se faz presente na ordem escravocrata que se instalou na modernidade. A Igreja abençoou a escravidão; e não somente isso pois, por suas vozes autorizadas, elaborou uma Teologia da Escravidão, continuando, dessa forma, o papel da religião como força opressiva. Vejamos a participação de três religiosos nesse processo: Padre Vieira, Jorge Benci e Antonil, que escreveram sermões e tratados que defendem, baseados na Bíblia, a escravidão de negras e de negros.

O Padre Antonio Vieira viveu no século XVII; foi importante membro da Companhia de Jesus, que no Brasil defendeu a da Coroa portuguesa e a Fé católica, por meio dos colégios (educação) e da evangelização dos índios (religião).

A Religião, de novo, beijava a Política. Para o Padre, se Portugal detém o poder, então Deus está do lado de Portugal. Ele foi hábil pregador e dominava os recursos da oratória; para Fernando Pessoa, poeta já ciado, Vieira é o maior artista da língua portuguesa. 

O Padre pregou o sermão 14 do Rosário, seguindo o calendário litúrgico da tradição cristã, a uma irmandade de pretos, em 1633, no dia de São João Evangelista, na Bahia; era o dia e festa da Senhora do Rosário dos Pretos. Para ele, os pretos deveriam agradecer a Deus chegar ao Brasil para serem salvos pelo cristianismo (VIEIRA, 1998): 

“Fez Deus tanto caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao mundo, o mandou escrever nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. – Virá tempo, diz Davi, em que os etíopes – que sois vós – deixada a gentilidade e idolatria, se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus […].” 

Nos sofrimentos infringidos pelos senhores aos escravizados, os pretos são imitadores de Cristo porque padecem de forma semelhante à paixão: 

“Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio.” 

Os mistérios dolorosos do Rosário, mais próprios do estado dos negros, são o merecimento de martírio, garantia de recompensa futura, no que há, igualmente, apoio bíblico. Encarecendo que o Redentor padeceu em sua Paixão os mistérios dolorosos, o padre Vieira compara essas dores às penas do inferno; assim, os engenhos de açúcar, que faziam a riqueza dos senhores, seriam um “doce inferno”: 

“E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno. Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos.” 

O trecho tem a perversidade de exigir dos negros, no inferno-engenho, a devoção que, por milagre, haveria de transformar aquele inferno em paraíso. A rudeza do trabalho nos infernos-engenhos era “trabalho doce”.

Se aos negros eram próprios os mistérios dolorosos, os gozosos, por sua vez, eram dos senhores, cuja sorte era muito diferente: “Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro”. 

Outro jesuíta, Jorge Benci escreveu o livro Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, no qual orienta os senhores a tratar de forma “cristã” os escravizados; seus conselhos se baseiam em três elementos: “pão, disciplina, trabalho”, inspirada no capítulo 33 do Eclesiástico (livro de sabedoria que não deve ser confundido com Eclesiastes, outro representante da sabedoria bíblica).  

Diz ele que, por causa do pecado original, houve guerra e, para que não houvesse tanta morte, introduziu-se “o direito das mesmas gentes que se perdoasse a vida aos que não resistiam, e espontaneamente se entregavam aos vencedores; ficando estes com o domínio e senhorio perpétuo sobre os vencidos, e os vencidos com perpétua sujeição e obrigação de servir aos vencedores”. A escravização, nesse raciocínio, seria um ato de misericórdia, pois é melhor ser escravizado do que morrer.  

Benci acrescenta que os senhores eram obrigados a ensinar a seus servos a doutrina cristã; os africanos, vindos da gentilidade, eram considerados “rudes nos mistérios de nossa Santa Fé, e tão ignorantes nos Mandamentos da Lei de Deus, que de cristãos não têm mais que o batismo”. Nessa tarefa, os senhores eram equiparados a “ministros deputados por Cristo para a propagação do seu Evangelho”. Os senhores devem dar exemplo (moral): não devem dar escândalo, induzir ao pecado e o maior de todos os danos, é induzi-lo a pecar. 

Disciplina não passa de forma para ele se referir a punição, castigo e violência: “Para trazer bem domados e disciplinados os escravizados, é necessário que o senhor lhes não falte com o castigo, quando eles se desmandam e fazem por onde o merecem”. Benci se vê como defensor dos escravizados, mas não pode consentir na extinção dos castigos. Por quê? Simplesmente porque eles são “rebeldes, e viciosos, não é possível que saiam bem disciplinados sem a disciplina sem o castigo”. Cita o Profeta Isaias: “usar de misericórdia com os maus era querer que não aprendam a ser bons”, em interpretação preconceituosa e manipuladora.

O ócio faz os escravizados se tornarem insolentes contra Deus e é a porta de vícios; se é mau para todos, pior é para eles. Ocorre que os livres e os brancos estão afetos aos mesmos efeitos do ócio, mas há diferenças: “[…] os Pretos são sem comparação mais hábeis para todo o género de maldades que os Brancos, por isso, eles com menos tempo de estudo saem grandes licenciados do vício na classe do ócio. Para justificar a distinção, cita o profeta Amós, comparando os filhos de Israel com os Etíopes, acrescentando, ainda: 

“Sendo os africanos tão inclinados por natureza ao vício da sensualidade […] era impossível achar-se um africano que não fosse desonesto […] não faz dúvida que os etíopes excedam na lascívia a todas as mais nações da África, e se igualam aos brutos mais libidinosos. A razão desta grande propensão dos pretos à impudicícia não só lhes vem do clima quente em que nascem, mas muito mais do pouco temor de Deus e pejo dos homens, que neles há.”

Esse trecho não esconde o preconceito contra os negros. 

Outro jesuíta, André João Antonil, publicou Cultura e opulência do Brasil, obra escrita entre 1708 e 1710. Antonil tece considerações sobre distribuição de trabalho, atividades e encargos diários, o castigo e o perdão que disso sucedem. Os tópicos desenvolvidos e os pontos de vista são similares aos de Benci: “No Brasil, costumam dizer que para o escravizado são necessários três PPP, a saber: pau, pão, pano. E, posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo” (ANTONIL, 2013, p. 106).

Antonil fala como administrador comprometido com Portugal e com a Igreja; apresenta visão geral autorizada sobre o papel dos senhores e sua importância para o sistema colonial português. Para isso, é indispensável a defesa dos princípios cristãos como fiadores da estabilidade do sistema, cuja violência é assumida a partir das instruções dadas sobre o castigo corporal infligido. Assume que São Paulo foi autoridade que amparou suas ideias.

Vieira, Benci e Antonil são vozes uníssonas saídas das mesmas entranhas; apesar de hegemônicas, não foram as únicas. Como usaram a Bíblia e o nome de Deus para a opressão!

Atenção: protestantes também eram escravagistas. Os países que tinham abraçado o protestantismo não tiveram diferente postura dos países católicos; Inglaterra, França e Holanda disputaram o tráfico de escravos e lucraram muito com isso e não somente com o comércio de escravizados, mas também com a escravização em suas colônias. 

Laurentino Gomes, no livro Escravidão, diz que Portugal e Brasil foram os maiores traficantes de escravizados, com 5,8 milhões dos 12,5 milhões de escravizados vindos para as Américas; os ingleses, “bastiões do abolicionismo no século XIX” arrancaram 3,2 milhões de escravos da África; franceses traficaram 1,4 milhão de escravos e holandeses, meio milhão. Como se vê, tanto católicos quanto protestantes gostavam de traficar, de escravizar, de lucrar. Tinham eles divergências teológicas, eclesiásticas e litúrgicas. Contudo, brancos europeus assemelhavam-se no gosto por oprimir, rapinar e matar. A Religião beijava a Política. E todos os demônios.

Parece que, mais do que a confissão religiosa, a ideia de superioridade branca e a consequente inferioridade negra tinham bases bíblicas e isso aliviou as consciências e o crime da escravidão sacrificou milhões de vidas humanas, tudo bíblica e religiosamente sustentados por autoridades religiosas, que elaboraram sistema teológico que justificava a escravização como vontade de Deus! 

Esses são alguns dos escribas e fariseus da modernidade, para quem os ais de Jesus são destinados. Há muitos mais, distribuídos por toda parte. Usam o poder que têm, inclusive de interpretar as escrituras, para a dominação, para a exploração, para a escravização.


Paulo Sérgio de Proença é Bacharel pela Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Nessas instituições foi pastor e professor. É Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente é professor da Unilab-Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Campus dos Malês-BA e membro da AME- Igreja Metodista Africana. Pesquisa atualmente temas relativos aos vínculos entre Bíblia, Literatura e escravidão.

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