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Educação no Brasil em Tempos de Necropolítica

Em alusão ao dia mundial da educação (28 de abril), o CEBI partilha a reflexão da educadora popular Roneide Braga dos Santos. Este artigo foi publicado em 2020, e falava do contexto político do Brasil, sob a extrema-direita, e os nefastos resultados que isso causaria, principalmente no campo da educação. Ainda que o texto não seja atual, fala muito sobre os recentes casos ocorridos em escolas e que nos preocupam profundamente. Através deste material, podemos ver o princípio desta situação e como podemos agir para superá-la. Boa leitura.


 “Indo e vindo, trevas e Luz.
Tudo é graça.
Deus nos conduz”

A última eleição presidencial que tivemos no Brasil, culminou com a vitória da extrema-direita, e essa tem materializado uma política em que a vida em suas diversas manifestações está em segundo plano. Essa ação política que não se preocupa com os mais vulneráveis, que fecha os olhos para o extermínio de determinados grupos, que não se sensibiliza com a morte de mais de 20 mil brasileiros e brasileiras devido à pandemia da covid 19, é o que chamamos de necrópolítica. Esse conceito foi desenvolvido pelo estudioso camaronês, Achille Mbembe. Ele discute a necropolítica como a capacidade do Estado em decidir quem vive e quem morre. Dentro desse contexto, a educação não deixa de ser atingida, pelo contrário ela é essencial para a execução desse projeto de governo.

A construção de um sistema educacional democrático no Brasil, tem sido uma luta constante de agentes sociais preocupados com uma educação de qualidade e socialmente referenciada. Os primeiros ensaios da organização formal de nosso sistema educacional têm início ainda no período colonial, com a chegada dos jesuítas, que protagonizaram essa organização. Assim, de acordo com as demandas que vão se desenhando na sociedade brasileira, a educação vai materializando novas configurações. No período da República, um marco significativo foi o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. O início dos anos de 1930, o Brasil passa por importantes transformações e essas mudanças irão se estender aos mais diversos setores e, a educação também pede reformulações em sua estrutura. O manifesto, foi escrito e publicado por intelectuais e educadores que buscavam um contraponto de uma educação conservadora e elitizada, para uma educação que se estendesse a toda população, sendo laica, gratuita e oferecida pelo Estado. 

Talvez, um dos marcos legais mais importantes que tenhamos conquistado foi o Artigo 205 da Constituição Federal de 1988 –  a “Constituição Cidadã”, que consagrou a educação como direito de todos e dever do Estado. É importante ressaltar que a inclusão da educação pública, gratuita e de qualidade, foi uma conquista dos educadores e educadoras do Brasil. Diga-se de passagem, parte dos princípios norteadores que serviram de base para os artigos constitucionais que tratam a Constituição Cidadã, foram gestados em setembro de 1986, em Goiânia, quando cinco mil educadores e educadoras de todos os cantos e recantos do Brasil, se reuniram para pensar a educação nacional, justamente no período de reabertura política, pós-ditadura militar e a reconstrução da democracia.

Ao longo de nossa história política, passamos por vários governos, duas ditaduras, avanços em determinados momentos e em outros, alguns retrocessos. Mas desde o impeachment que derrubou a presidenta democraticamente eleita, Dilma Rousseff em 2016, temos acompanhado e visto a educação e muitas das conquistas dos trabalhadores e trabalhadoras desse setor despencar numa velocidade acelerada. 

O atual governo, tem colocado em prática mudanças avassaladoras que estão provocando o desmonte de nosso sistema educacional. Uma das primeiras medidas aprovadas foi a educação domiciliar. Essa medida, além de afetar o processo de socialização das crianças, adolescentes e jovens, isenta o Estado de suas responsabilidades em oferecer educação e transfere para as famílias essa responsabilidade. A partir daí, temos visto retrocessos como corte de verbas de incentivo e valorização à pesquisa, com o corte de bolsas de Mestrado e Doutorado. O ENEM do ano de 2019, já foi uma prova com um caráter menos crítico e analítica em relação ao formato das provas que estavam sendo aplicadas nos últimos anos. O livro didático enviado para a segunda fase do Ensino Fundamental, em algumas escolas, não respeitou a escolha que havia sido feita pelos professores e professoras, uma importante conquista do Programa Nacional do Livro Didático, que sempre se pautou no respeito e autonomia das escolas e dos professores para fazer essa escolha. Alguns desses livros enviados para determinadas disciplinas, já apresentam um conteúdo menos crítico e mais conservador. A própria aquisição dos livros foi algo questionado pelo governo, como se os livros não fossem necessários para a continuidade do processo ensino-aprendizagem. Ao questionar a compra dos livros, ele tenta desestruturar uma importante política pública que é o Programa Nacional do Livro Didático, tão importante para garantir uma melhor aprendizagem especialmente aos estudantes oriundos de famílias carentes, sem condições de adquiri-los. A necropolítica enxerga a educação como um gasto desnecessário, e não como um investimento essencial para o desenvolvimento de um país e de seu povo.

Uma característica desse governo com sua necropolítica, é atacar as pessoas com histórico de luta popular. Entre estes, destacamos aqui as perseguições à imagem e ao trabalho do educador Paulo Freire, um dos mais citados em trabalhos e pesquisas acadêmicas pelo mundo, por isso um dos mais respeitados. Responsável por desenvolver no Brasil uma proposta pedagógica calcada na pedagogia libertadora, que visa a construção de sujeitos autônomos, e que busca do desenvolvimento de suas criatividades e potencialidades.

O Ministério da Educação já está em seu segundo ministro e ambos já demonstraram despreparo para encabeçar essa pasta e conduzir o Ministério. O ENEM de 2019 apresentou uma série de falhas e, atualmente com a crise provocada pelo covid 19, o governo vinha insistindo em manter o calendário do ENEM, demostrando total insensibilidade, com os milhares de estudantes que não estão frequentando as escolas, o que iria favorecer as classes sociais privilegiadas. Essas classes mantêm seus filhos e filhas estudando por meio das aulas on-line, realidade que não atinge uma parcela considerável de estudantes que em muitos casos não tem acesso a internet e recursos tecnológicos. Mas, graças a mobilização dos estudantes, professores e outros setores que pressionaram o governo, o Ministério da Educação decidiu adiar o ENEM/2020.

Entre as ações nefastas cometidas pelo atual governo, não podemos esquecer a proposta da “escola sem partido”, que limita a capacidade criativa dos professores e professoras criando mecanismos de censura. Entre esses, o governo incentiva os estudantes a filmarem as aulas para denunciar docentes que ministrarem aulas com conteúdo considerados de viés ideológico, e ainda cria um canal para fazer as denúncias. Mas claro, viés ideológico é apresentar qualquer conteúdo ou comentário que questione o atual governo ou as questões relacionadas as desigualdades sociais, a defesa dos direitos humanos, das minorias etc. Tudo isso, além de intimidar tem levado ao adoecimento psíquico da categoria, que tem que enfrentar todos os dias condições de trabalho e salário, nem sempre favoráveis. 

Diante desse quadro, há muita gente angustiada e se perguntando: qual a saída? Onde enxergar os sinais de esperança? Acredito que concretamente ninguém tem tais respostas. Elas precisarão ser criadas e recriadas por todos e todas que acreditam numa sociedade mais justa, humana e fraterna. Não podemos perder a esperança, ou melhor, como nos ensinou Paulo Freire, devemos esperançar, agir, acreditar. É preciso transformar o medo e as frustrações em luta para não perdermos importantes conquistas e direitos alcançados pelos movimentos de educadores e educadoras ao longo da História.

São tempos difíceis que exigem muito cuidado, especialmente com as nossas vidas e de toda a humanidade. No entanto, é preciso fortalecer os laços, buscar nas pessoas e nos grupos que sonham e acreditam numa sociedade pautada na solidariedade, a força necessária para seguirmos em frente. Muitos estudantes também enxergam com perplexidade essas ações políticas e como tudo isso os afeta diretamente. Como professoras/es, educadoras/es populares, precisamos unir forças para plantarmos as sementes e colhermos os frutos do amanhã melhor. Nesse tempo em que o cuidado com a vida significa nos afastarmos por meio do isolamento social, as redes sociais se tornam importantes ferramentas de mobilização social em busca de uma educação democrática, e democracia aqui é entendida no sentido do acesso, da liberdade de expressão e criação, no respeito as diferenças e na qualidade do ensino oferecido. 

Que a ternura do Deus da Vida nos ajude a enxergar os melhores caminhos e nos conduza nessa travessia!

Roneide Braga Santos-CEBI/Go

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