Nesses dias, a tragédia que se abate sobre grande parte do Rio Grande do Sul e algumas regiões de Santa Catarina nos convida a ações de solidariedade imediata e emergencial, passo urgente e indispensável. No entanto, nos chama, principalmente, a acolher a mensagem que uma calamidade como essa pode nos dizer e nos fazer mudar de rumo no modo de viver e organizar a sociedade.
Nos evangelhos, Jesus adverte: “Quando vocês veem uma nuvem se levantar no poente, sabem que virá chuva. Quando sentem soprar o vento sul, dizem que vai fazer calor. E assim acontece. Hipócritas! Vocês sabem avaliar o aspecto da terra e do céu. Por que não sabem avaliar o tempo presente?” (Lc 12, 54-56).
Há mais de 60 anos, na Igreja Católica, o papa João XXIII ensinava que “os sinais do tempo” se tornam categoria teológica e critério espiritual, através dos quais devemos discernir o que o Espirito diz, hoje, às Igrejas e ao mundo (Cf. Ap 2, 7).
Infelizmente, quem, há quatro ou três anos, esperava que a humanidade saísse da pandemia diferente de como entrou, se decepcionou. Mesmo com a imensa multidão de vítimas e de muita gente que até hoje sofre consequências da Covid, a maior parte da sociedade dá a impressão de não ter aprendido nada com todo aquele sofrimento.
Nesses dias, diante da tragédia das inundações no Sul do Brasil, há quem fale em vingança da natureza. Tradições indígenas propõem que a humanidade se reconcilie com os espíritos dos rios que não suportam mais tantas agressões. O que, nesses dias, está acontecendo no Sul, promete se repetir em outras regiões, nas quais a mineração destruiu rios, a especulação imobiliária ocupou desordenadamente espaços vitais da natureza e os biomas estão seriamente ameaçados de extinção.
Seja como for, sem dúvida, podemos e devemos interpretar o que está acontecendo a partir da crise ecológica que vivemos e da multidão de pessoas refugiadas não apenas de guerras e violências sociais e políticas, mas também das calamidades ecológicas nas quais a própria sociedade dominante tem grave responsabilidade. Além dessa análise social e política, acontecimentos como esses devem ser lidos a partir da espiritualidade, ou seja, contêm uma mensagem que diz respeito ao nosso modo de viver a fé e a missão, seja a partir da fé cristã, ou de tradições orientais, indígena, negras ou, simplesmente de espiritualidade humana não religiosa. Precisamos responder a essa realidade com medidas que mudem nossa forma de organizar a sociedade, e de nos relacionarmos com a mãe-Terra, as águas e a natureza que nos rodeia.
Parece que nesses dias no Brasil, a natureza decidiu tornar atual a palavra que ressoa como refrão de um dos mais antigos salmos da Bíblia:
“A voz de IHVH por sobre as águas.
EL se manifesta; IHVH sobre as águas
sobre as águas torrenciais” (Sl 29, 3).
Nesses dias, que as Igrejas históricas do Ocidente celebram a festa de Pentecostes, é bom saber que, conforme os textos bíblicos mais antigos, o termo hebraico Ruah, Espírito, era a atmosfera que nos cerca. Posteriormente, foi identificado como Ventania. Entretanto, nos primeiros textos bíblicos, corresponde bem ao que, na América Latina, os povos andinos chamam de Pacha-Mama, a Mãe Terra. Também pode ser compreendido no sentido do Axé das comunidades de matriz africana.
Assim sendo, podemos afirmar que a Ruah Divina corresponde ao que, na Laudato Si, carta-encíclica publicada na festa de Pentecostes de 2015, o papa Francisco chama de “Ecologia Integral”, presença divina no universo e que, como energia amorosa, nos chama ao cuidado e à unidade de toda a comunidade da vida.
De acordo com o livro dos Atos dos Apóstolos, a manifestação do Espírito, a Divina Ruah, sobre os primeiros discípulos e discípulas de Jesus não se deu em algum templo, ou sinagoga e sim na sala de uma casa de família (Cf At 2). Assim, nessa celebração de um novo Pentecostes, a Ternura Divina nos chama a ouvir sua voz a partir das inundações e da catástrofe que, claro, não são criadas por Deus, nem são obras do Espírito e sim frutos da ambição humana na agressão às águas que não têm mais para onde correr.
O Espírito que falou a Moisés e ao povo hebreu, em meio à tempestade do Sinai (e a festa judaica de Pentecostes lembra isso cada ano), hoje, nos fala através das inundações do Sul e nos chama a nova mobilização pela Vida.
A celebração desse novo Pentecostes deve se concretizar na nossa mobilização para que essa iniciativa de solidariedade que ocorre no Sul possa desembocar na implementação de políticas sociais que garantam vida digna não só para quem está sofrendo diretamente os efeitos da atual tragédia climática, mas para todas as pessoas, em todas as regiões.
É nesse mutirão de solidariedade que poderemos tornar verdade a palavra que as Igrejas antigas cantam na entrada da celebração de Pentecostes:
“O Espírito do Amor,
o universo todo encheu.
Tudo abarca em seu saber,
Tudo enlaça em seu amor, aleluia, aleluia…”
(verso inspirado no Livro da Sabedoria, 1, 7).
Autor: Irmão Marcelo Barros