Comentário do evangelho sobre Marcos 10,17-30. O texto pertence a Carlos e Mercedes Lopes.
Boa leitura!
Abrir os olhos para ver
O texto de hoje traz dois assuntos:
- Conta a história do moço que perguntou pelo caminho da vida eterna e
- chama a atenção para o perigo das riquezas.
O moço não aceitou a proposta de Jesus, pois era muito rico. Uma pessoa rica é protegida pela segurança que a riqueza lhe dá. Ela tem dificuldade em abrir mão desta segurança. Agarrada às vantagens dos seus bens, vive preocupada em defender seus próprios interesses. Uma pessoa pobre não tem esta preocupação. Mas há pobres com cabeça de rico. Muitas vezes, o desejo de riqueza cria neles uma grande dependência e faz o pobre ser escravo do consumismo, pois ele fica devendo prestações em todo canto. Já não tem mais tempo para dedicar-se ao serviço do próximo.
Pode libertar-se uma pessoa que vive preocupada com sua riqueza ou que vive querendo adquirir aquelas coisas da propaganda na televisão em vez de seguir Jesus e viver em paz numa comunidade cristã? É possível? O que você acha? Conhece alguém que conseguiu largar tudo por causa do Reino?
Situando
No texto de hoje, Jesus aponta mais dois aspectos da conversão que deve ocorrer no relacionamento dos discípulos com os bens materiais (Mc 10,17-27) e no relacionamento dos discípulos entre si (Mc 10,28-31). Para poder entender todo o alcance das instruções de Jesus, é bom olhar, novamente, o contexto mais amplo em que Marcos coloca estes textos. Jesus está subindo para Jerusalém, onde será crucificado (cf. Mc 8,27; 9,30.33; 10,1.17.32).
Ele está entregando sua vida. Sabe que vão matá-lo, mas não volta atrás. Esta atitude de fidelidade e de entrega à missão que recebeu do Pai dá a Jesus as condições de apontar aquilo que realmente importa na vida.
As recomendações de Jesus valem para todos os tempos, tanto para o povo da época de Jesus e de Marcos como para nós hoje, aqui no Brasil. Pois o que sempre importa é recomeçar a construção do Reino, renovando o relacionamento humano em todos os níveis, para que esteja de acordo com a vontade de Deus.
Comentando
1. Marcos 10,17-19: Os mandamentos e a vida eterna
Alguém chega e pergunta: “Bom mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?” O Evangelho de Mateus informa que se tratava de um jovem (Mt 19,20.22). Jesus responde bruscamente: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus!” Jesus desvia a atenção de si mesmo para Deus, pois o que importa é fazer a vontade do Pai, revelar o Projeto do Pai. Em seguida, Jesus afirma: “Você conhece os mandamentos: não matar, não cometer adultério, não roubar, não levantar falso testemunho, não defraudar ninguém, honrar pai e mãe”. O jovem tinha perguntado pela vida eterna. Queria a vida junto de Deus! E Jesus só lembrou os mandamentos que dizem respeito à vida junto do próximo! Não falou dos três primeiros que definem o relacionamento com Deus! Para Jesus, só conseguimos estar bem com Deus, se soubermos estar bem com próximo. Não adianta se enganar. A porta para chegar até Deus é o próximo. O homem rico se preocupa com a vida eterna. Jesus, com vida dos pobres no presente.
2. Marcos 10,20: Observar os mandamentos, para que serve?
O moço responde que observa os mandamentos desde a sua juventude. O curioso é o seguinte. O rapaz tinha perguntado pelo caminho da vida. Ora, o caminho da vida era e continua sendo: fazer a vontade de Deus expressa nos mandamentos. Quer dizer que ele observava os mandamentos sem saber para que servem. É como muitos cristãos que não sabem para que serve ser cristão. “Nasci no Brasil, por isso sou cristão!” Coisa de costume.
3. Marcos 10,21-22: Partilhar os bens com os pobres
“Jesus olhou para ele, o amou e lhe disse: Só uma coisa te falta: vai, vende o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu, e em seguida vem e segue-me!” A observância dos mandamentos é apenas o primeiro degrau de uma escada que vai mais longe e mais alto. Jesus pede mais! A observância dos mandamentos prepara a pessoa para ela poder chegar à doação total de si em favor do próximo. Jesus pede muito, mas ele o pede com muito amor. O moço não aceitou a proposta de Jesus e foi embora, “pois era muito rico”.
4. Marcos 10,23-27: O camelo e o buraco da agulha
Depois que o moço foi embora, Jesus comentou a decisão dele: Como é difícil um rico entrar no Reino de Deus! Os discípulos ficaram admirados. Jesus repete a mesma frase e acrescenta: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino” Esta última expressão era um provérbio que não pode ser tomado ao é da letra. Nós também temos provérbios assim que não podem ser tomados ao pé da letra. Por exemplo: “dar nó em pingo d’água”, “entrar pelo cano”, “perder a cabeça”. O provérbio do camelo e do buraco da agulha se usava para dizer que uma coisa era impossível e inviável.
Os discípulos ficaram chocados com a afirmação de Jesus. Sinal de que não tinham entendido a resposta de Jesus ao moço rico. “Vai, vende tudo, dá para os pobres, vem e segue-me!” Como dissemos, o moço tinha observado os mandamentos, mas sem entender o porquê da observância. Algo semelhante estava acontecendo com os discípulos. Eles tinham abandonado todos os bens conforme Jesus tinha pedido ao moço, mas sem entender o porquê do abandono. Se tivessem entendido, não teriam ficado chocados com a exigência de Jesus. Quando a riqueza ou o desejo da riqueza ocupa o coração e o olhar, a pessoa já não consegue perceber o sentido da vida e do evangelho. Só Deus mesmo para ajudar! Pois para Deus nada é impossível.
A frase “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino!” não trata, em primeiro lugar, da entrada no céu depois da morte, mas sim da entrada na comunidade ao redor de Jesus.
5. Marcos 10,28-31: Serviço e gratuidade
Por isso, Pedro pergunta: “Olha, nós deixamos tudo e te seguimos. O que é que vamos ter?” Apesar do abandono, eles mantêm a mentalidade anterior. Não entendem o sentido do serviço e da gratuidade. Abandonaram tudo para ter algo em troca. A resposta de Jesus é simbólica e deixa entrever que não devem esperar vantagem, nem segurança, nem promoção de nada. Vão ter cem vezes mais, com perseguições, já nesta vida. E, no mundo futuro, terão a vida eterna de que o moço rico falava.
Alargando
Jesus e a opção pelos pobres
Um duplo cativeiro marcava a situação do povo na época de Jesus. De um lado, o cativeiro da política de Herodes, apoiada pelo Império Romano e mantida por todo um sistema bem organizado de exploração e de repressão. De outro, o cativeiro da religião oficial, mantida pelas autoridades religiosas da época. Por causa disso, o clã, a família e a comunidade estão sendo desintegrados. Uma grande parte do povo vivia excluída, marginalizada, sem lugar, nem na religião, nem na sociedade. Em consequência disso, havia vários movimentos que, como Jesus, procuravam uma nova maneira de viver e conviver em comunidade: essênios, fariseus e, mais tarde, os zelotes.
Dentro da comunidade de Jesus, porém, havia algo novo que a diferenciava dos outros grupos. Era a atitude frente aos pobres e excluídos. As comunidades dos fariseus viviam separadas. A palavra “fariseu” quer dizer “separado”. Viviam separados do povo impuro. Muitos dos fariseus consideravam o povo como ignorante e maldito (Jo 7,49), cheio de pecados (Jo 9,34). Não aprendiam nada do povo (Jo 9,34).
Jesus e a sua comunidade, ao contrário, viviam misturados com as pessoas excluídas, consideradas impuras: publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mc 2,16; 1,41; Lc 7,37). Jesus reconhece a riqueza e o valor que os pobres possuem (Mt 11,25-26; Lc 21,1-4). Proclama-os felizes, porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20; Mt 5,3). Define sua própria missão como “anunciar a Boa Nova aos pobres” (Lc 4,18). Ele mesmo vive como pobre. Não possui nada para si, nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58). E a quem quer segui-lo para conviver com ele manda escolher: ou Deus ou o dinheiro! (Mt 6,24). Manda fazer opção pelos pobres (Mc 10,21).
A pobreza que caracterizava a vida de Jesus e dos discípulos, caracterizava também a missão. Ao contrário dos outros missionários (Mt 23,15), os discípulos e as discípulas de Jesus não podiam levar nada, nem ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem sacola, nem sandálias (Mt 10,9-10). Deviam confiar é na hospitalidade (Lc 9,4; 10,5-6). E caso fossem acolhidos pelo povo, deviam trabalhar como todo o mundo e viver do que receberiam em troca (Lc 10,7-8). Além disso, deviam tratar dos doentes e necessitados (Lc 10,9; Mt 10,8). Então podiam dizer ao povo: “O Reino chegou!” (Lc 10,9).
Por outro lado, quando se trata de administrar os bens, aquilo que chama a atenção nas parábolas de Jesus é a seriedade que ele pede no uso destes bens (Mt 25,21.26; Lc 19,22-23). Jesus quer que o dinheiro esteja a serviço da vida (Lc 16,9-13). Para Jesus, ser pobre não é sinônimo de relaxado e descuidado.
Este testemunho diferente a favor dos pobres era o passo que faltava no movimento popular da época. Cada vez que, na Bíblia, surge um movimento para renovar a Aliança, eles recomeçam restabelecendo o direito dos pobres, dos excluídos. Sem isto, a Aliança não se refaz! Assim faziam os profetas, assim faz Jesus. Ele denuncia o sistema antigo que, em nome de Deus, excluía os pobres. Jesus anuncia um novo começo que, em nome de Deus, acolhe os excluídos. Este é o sentido e o motivo da inserção e da missão da comunidade de Jesus no meio dos pobres. Ela atinge a raiz e inaugura a Nova Aliança.