por Eliana Alves dos Santos Cruz via Guest Post para o Portal Geledés
O curioso é que em grande parte das vezes (claro, tem gente que curte e pede pra receber esse título) as “musas atletas” se incomodam com a alcunha. Elas treinam absurdamente, se privam de muitas coisas, abrem mão de grande parte da juventude na labuta dos treinos, atingem resultados importantes e aí … musas.
Quatro episódios de mulheres no esporte e a relação com a estética ao longo desses anos me chamam a atenção. Tudo polêmica, tudo nitroglicerina pura. O caso das nadadoras Mariana Brochado e Rebeca Gusmão , no Pan de 2007; da judoca negra Rafaela Silva, nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 e agora o da saltadora Ingrid Oliveira, no Pan de Toronto.
Mariana e Rebeca eram amigas. Acompanhei de perto as duas em muitas viagens com a delegação de natação. Não vou entrar no mérito da questão que baniu Rebeca do esporte. Não é esse o tema aqui. Para mim era curioso observar que apesar de próximas, a imagem de uma refletida na mídia era o oposto da figura da outra. Enquanto Mariana (apesar de nunca ter reivindicado isso!) recebia o tratamento da tradicional “musa linda”, Rebeca era tratada com desconfiança, como a “estranha”. Quando Mariana não conseguiu a classificação para nadar os Jogos Pan-Americanos foi um dia para não esquecer e uma hora dessas ainda bolo o roteiro de um filme.
As cenas aconteceram no Parque Aquático Julio de Lamare lotado, jornalistas apinhados na zona mista. A eleita pelos veículos desde os Jogos Olímpicos de 2004 para estrelar as galerias de fotos do Pan no Rio de Janeiro estava fora da competição. Tive que correr para ver o que acontecia no vestiário, pois ela demorava demais para sair e os microfones estavam impacientes. Encontrei Mariana muito triste, olhos vermelhos, obviamente, era uma atleta e queria estar em ação no evento histórico em sua cidade. Mas havia o subtexto da história da “musa” como um espinho machucando fundo. Ela sabia que viriam com a mensagem da “mulher bonita e incompetente”. Entristecia-se, mas também se irritava.
Enquanto isso, Rebeca, a “não musa” andava de um lado para o outro dando ânimo, dizendo para que não desistisse jamais. E nadou feito fera naquela etapa da seletiva. No dia seguinte Mariana apareceu com uniforme de comentarista de uma emissora de TV. Deu a volta por cima em 24 horas e teve que provar matando seu leão diário ao longo de anos que não era “só um rostinho bonito”. Conseguiu, mas pagou um preço alto pelo preconceito e pelo rótulo carregado mais como fardo do que qualquer outra coisa. Rebeca se envolveu num estrondoso caso de doping, foi banida, tentou se matar três vezes, hoje é treinadora e se sente no direito de também ser… bonita! Por que não?
Com a judoca Rafaela Silva a coisa foi, literalmente, peso-pesado na misoginia, no racismo, no ódio de classes. Muito longe dos padrões estéticos definidos pelos meios para que recebesse a faixa e a coroa de “miss esportes”, a moça não estava nem aí para isso, pois chegou como uma das favoritas a subir no pódio mais sonhado por um atleta. Mas não foi além das oitavas de final. Não foi poupada pelos veículos. Não foi poupada pelos leitores. Nas redes sociais a frase “lugar de macaca não é no judô” foi o mais leve que leu.
Recordando o ocorrido, Rafaela enfrentava a húngara Hedvig Karakas e tentou golpe que inicialmente lhe rendeu um wazari, mas, depois de averiguação dos juízes, foi eliminada acusada de golpe ilegal. Também não entrarei no mérito da questão que levou a eliminação de Rafaela dos Jogos de Londres, mas é incrível como no Brasil errar parece não ser coisa de humanos e se o erro vier de uma mulher a desumanidade triplica, se vier de uma mulher negra o linchamento é elevado a enésima potência.
O sangue de lutadora subiu. Ela foi pras redes, xingou, esperneou, foi novamente xingada por isso… Como diz por aí, a coisa foi babado. Um ano depois, em agosto de 2013, Rafaela Silva, a moça negra saída da Cidade de Deus no Rio de Janeiro, formada judoca num projeto social deu o troco conquistando o primeiro ouro feminino para o país em um Campeonato Mundial de Judô. Wazari e Ippon no preconceito. Resultado peso-pesado para a história do esporte nacional.
“Essa medalha é uma resposta para o pessoal que me criticou e que falou que lugar de macaca não era no judô, que eu tinha que caçar outra coisa para fazer. E hoje estou aqui mostrando que não depende da cor, nem do dinheiro, de nada. Depende é da garra e da vontade que você tem para ir buscar essa medalha” – desabafou na ocasião.
E agora, minha gente, como o ciclo sempre se cumpre temos uma nova história. Ingrid de Oliveira, moça do subúrbio carioca, que vem se destacando desde os 17 anos nos saltos ornamentais acabou de receber a faixa de musa brasileira do Pan de Toronto e já está no pelourinho por um salto errado, vejam bem, um único salto errado nas eliminatórias da prova e que não a tirou das finais! Pecado mortal na terra dos machos infalíveis, ela tirou fotos de maiô e seu belo corpo apareceu. Creio que não dá pra praticar saltos ornamentais com outra vestimenta… ou dá?! As galerias de fotos nos sites e blogs e, o pior de tudo, os comentários são de arrepiar. Ironias a parte, o fato é que passou de “a gostosa” para “a gostosa incompetente”. Mariana Brochado teria muito que comentar a respeito…
Tudo isso aconteceu com Ingrid no espaço de três dias, antes mesmo da cerimônia de abertura da competição. Como os Jogos Pan-Americanos de Toronto estarão inundando a mídia até o próximo dia 26, quem saberá o que ainda vem por aí. E mais, ano que vem acontece por aqui o movimento mais importante nesta roda: Os Jogos Olímpicos.
Que consigamos ser citius (mais rápidos), altius (mais altos) e fortius (mais fortes) também na luta contra o preconceito.