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Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa (Lucas 7,1-10) [Edmilson Schinelo]

Senhor
Uma longa viagem de Jesus e de seus discípulos, cansaço, fome… Chegaram a colher espigas em roça alheia, num dia de sábado (Lucas 6,1-5). Depois de curar muita gente (Lucas 6,6-11.18-19), de proclamar as bem-aventuranças (o que em Lucas acontece numa planície – cf. 6,17.20-26), e de orientar seus discípulos, Jesus finalmente chega em casa, na cidade de Cafarnaum. Mal acabou de entrar na cidade e é procurado por lideranças judaicas da cidade (anciãos ou presbíteros). Eles vêm a pedido de um centurião romano, cujo servo está muito doente. Insistem que Jesus vá salvá-lo (Lucas 7,1-3).

O descanso fica para depois e Jesus se desloca, então, à casa do centurião. No caminho, amigos do centurião vão ao seu encontro com novo recado: Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa… A frase nos é muito conhecida: uma palavra de Jesus bastaria para que a cura acontecesse, para que a salvação se realizasse (Lucas 7,6-7).

Jesus fica admirado com a fé do centurião, que é estrangeiro: Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei uma fé como esta! (Lucas 7,9).  E, sem que o texto mencione as palavras curadoras de Jesus, a cura acontece. A narrativa se conclui afirmando que ao voltarem para casa, os enviados encontraram o servo em perfeita saúde (Lucas 7,10).

Dois protagonistas marginais

Por motivos bem diferentes, Jesus e o centurião, os protagonistas do episódio, ocupam lugares marginais em seu meio. Jesus é profeta, consciente da situação de opressão vivida por seu povo, mas nem sempre bem aceito em sua própria terra. Ele mesmo havia afirmado: Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria! (Lucas 4,24). O centurião, por sua vez, representava o poder colonizador e tirano dos romanos. Comandando a centúria (tropa romana de cerca de cem soldados), ele tem o papel de garantir a “ordem pública” e assegurar a cobrança dos tributos (em Cafarnaum, especialmente os impostos da pesca). A serviço de Roma ou de Herodes Antipas, representa os interesses de uma pequena elite. Não é preciso muito esforço para imaginar o quanto a população local o rejeitava.

Na versão apresentada por Mateus (Mateus 8,5-13), é o próprio centurião que se dirige a Jesus. E tal como a legião de demônios (Marcos 5,12; Mateus 8,31), ele implora a Jesus. O representante das forças do império se dobra às forças do Reino. Em Mateus, a fé do centurião é destacada (em contraste com a pouca fé dos israelitas). Mas também se destaca o poder de Jesus em relação ao do centurião.

De maneira diferente, o relato de Lucas, quer mostrar outra imagem do centurião: ele não se sente digno sequer de ir até Jesus, envia alguns dos anciãos dos judeus. E estes o apresentam como uma pessoa que ama a nação judaica. Teria até construído (ou mandado construir) a sinagoga da cidade (Lucas 7,5). Sabemos que o evangelho de Lucas tem a tendência de amenizar o papel opressor dos romanos. É o único relato no qual até na cruz Jesus perdoa os soldados, porque não sabem o que fazem (Lucas 23,34). Mesmo assim, chama a atenção não só a fé, mas também a bondade do centurião, demonstrada pelo amor à população local e pela preocupação com o servo doente. Se ele foi de fato tal pessoa, não teria sido bem visto pelo próprio império romano. Neste caso, teria feito a escolha de “estar à margem” pela maneira com que usou seus privilégios (sua fortuna ou sua autoridade).

Salvar uma pessoa para devolvê-la à escravidão? Ou outra masculinidade?

Bem mais à margem é a condição do jovem doente. O texto o apresenta inicialmente como um servo ou escravo (no grego, doúlos). Seria “vantajosa” a cura para que ele voltasse à condição de escravo? Que salvação seria essa? Que libertação lhe traria Jesus? Curar uma pessoa para devolvê-la à escravidão do império?

Parece ser outra a compreensão da comunidade lucana. Se, por um lado, a cura representa a antecipação do Reino definitivo, este Reino também se adianta pela forma com que é descrita a relação entre o centurião e seu servo. O texto afirma que ele o estimava muito (Lucas 7,2). Não se trata, entretanto, de uma “estima” em função do valor financeiro ou laboral do servo. O termo é o mesmo utilizado pela primeira carta de Pedro ao falar de Jesus: a pedra rejeitada pelos homens, para Deus é a pedra preciosa (2Pedro 2,4). Trata-se de uma estima especial, um carinho precioso.

Qual seria a relação entre o centurião e essa pessoa? Não há como saber. De qualquer forma, não se trata de relação senhor-escravo. Isso fica mais claro quando os amigos transmitem o novo recado do centurião: Não sou digno de que entres em minha casa… Mas dizei uma palavra e o meu rapaz será curado (Lucas 7,7). Quando faz uso da fala, o centurião não o chama de servo (doúlos), mas de “meu rapaz”. O termo grego é “pais”, que em outros contextos é traduzido por jovem, menino, criança e até filho (Lucas 8,54; João 4,51; 6,9). Para o centurião, a pessoa a ser curada é o seu rapaz, o seu jovem.

Como o texto usou antes e volta a usar depois o termo servo, é menos provável tratar-se aqui de criança ou filho. Não raramente, homens do mundo grego-romano tinham consigo jovens ou servos em relação de grande amizade e companheirismo, às vezes também namoro. Não é possível afirmar isso do texto. Mas é notável outro modelo de masculinidade: não nos é apresentada a imagem de um soldado tirano, violento, fazendo valer sua força e sua autoridade para conseguir seus interesses. Ao contrário, trata-se de um estrangeiro sensível à população local e muito mais ainda ao rapaz que está doente. Mais do que um servo, ele tem um companheiro. Mesmo em meio a sistemas tiranos, novas relações são possíveis!

Mais uma vez, um estrangeiro “pagão” é apresentado como modelo de fé e de bondade: compromisso solidário também assumido pelo samaritano (Lucas 10,29-37), apresentado a nós hoje como convite e desafio. Tal como o centurião, sejamos capazes de, pela confiança e pelo jeito de vivermos novas relações, despertar a admiração de Jesus (Lucas 7,9).

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