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O terror na Maré e a maré de terror que avança: matar como um método da justiça e uma política de Estado

por João Ferreira Santiago*

A gente ainda é capaz de se comover com um atentado, sim!
A gente ainda é capaz de dizer não à cultura da violência, sim!
A gente ainda é gente, sim!

E o atentado foi contra uma mulher, negra e pobre, o segmento mais violentado em nosso país! Estamos “surfando”, às vezes. Parece que estamos à deriva, numa onda de terror em nosso país. Tem prevalecido em nós a resignação. Porém, a indignação nos rodeia.

O assassinato da vereadora Marielle Franco do PSOL-RJ, por execução sumária, juntamente com o motorista que estava com ela, se constituirá em um marco histórico. Temos mais uma mártir, ao lado de Margarida Alves, de Irmã Dorothy Stang, de Frei Tito de Alencar, de Dona Marisa Letícia e de tantos e tantas que foram executados/as pelas mesmas causas e razões: defender a verdade, a liberdade e a justiça, e denunciar quem mata e quem manda matar.

A forma de execução varia, mas todos são executados. Historicamente, os assassinos são os mesmos. Aqueles que governam, legislam e julgam. Seria esta a razão de jamais haver punição? E, em última instância, quem matou Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes foi o Estado brasileiro, bem como aqueles que o servem, tornando-o ainda mais violento, excludente e desigual, autorizando e praticando terror contra as comunidades pobres.

Todos eles estão com as mãos manchadas de sangue inocente. Certamente vão questionar o porquê de tanta comoção. Afinal, para eles foi apenas mais uma morte.

A elite brasileira conseguiu se superar em mesquinhez, em mediocridade, em violência e em desfaçatez. Naturalizou a corrupção, como dos outros; a miséria, como fruto da incompetência dos miseráveis. Por isso, a sua religião é a meritocracia Aeciana; a violência como método da política neoliberal, bandido bom é bandido rico; e, por fim, o golpe como instrumento de tomada do poder.

A pergunta que tem sido feita por onde passo é, que sentido tem isso?

Que sentido tem destruir um país de sonhos e os sonhos de um país que, pela primeira vez na sua não tão longa história, sonhava em ser uma nação? Nação aqui é no sentido como a entendia o mestre Plínio de Arruda Sampaio:

uma nação precisa de soberania energética; de soberania alimentar; de soberania nas fronteiras; de soberania política; de soberania intelectual e de pensamento. Uma nação, no paradigma moderno, pressupõe Democracia Participativa!

Para o professor Plínio, uma nação precisa de um exército forte! Forte, não violento. Guardo estas palavras ouvidas há quinze anos e parece que as ouvi agora há poucas horas.

Este país vive a absolutização da violência como política institucional. Mata-se para resolver os “problemas” que surgem e podem causar desconforto para sua elite, que é representada, e bem representada, pelo Poder Judiciário que, por sua vez, legisla a partir das próprias convicções, interesses e corporativismos; pela grande mídia, sua escola de corrupção, de chantagens e de outras violências; e pelo crime organizado, cujos métodos são reproduzidos em instituições e organizações de classe e de poder sem cerimônias.

Quem executou a companheira Marielle Franco, deve ser encontrado e preso sim. Mas pouco ou nada significa se não for igualmente encontrado e preso, quem mandou executá-la. Este foi apenas mais um passo de uma possível maratona, na qual outros já foram eliminados e esquecidos.

A pergunta que não quer calar é: quem será o próximo, ou a próxima?

O que aconteceu mesmo com o governador Eduardo Campos? Qual é a conclusão a que se chegou sobre a morte do juiz Teori Zavascki? O que eles todos representavam, o que pensavam e a quem se tornaram ameaças? Que relação teria entre suas mortes e a morte da princesa da Maré?

Quem ainda se lembra do maior crime ambiental do Brasil ocorrido em Mariana, Minas Gerais? A mídia tão bem paga para silenciar, vai falar algo? O congresso financiado pela corrupção e por ela contaminado, vai exigir alguma atitude de quem comprou a sua consciência?

Continuando as interrogações: o poeta Bob Dylan pergunta, na canção Blowin in the Wind, na versão de Diana Pequeno: “Quantas mortes ainda serão necessárias, para que se saiba que já se matou demais?”. A resposta estará no vento de nossa capacidade de superar a violência.

O certo, por enquanto, é que o noticiário mudou! Não se fala mais em corrupção, em visitas-encontros entre os chefes das organizações poderosas nas madrugadas sombrias da capital federal. Não se fala mais na entrega criminosa e covarde de nossas riquezas naturais para empresas multinacionais, inclusive o Aquífero Guarani. Não se fala mais dos ataques aos direitos dos trabalhadores que a mídia insiste em chamar de reformas! Não se fala mais na indicação e na campanha mundial para o presidente Lula ser eleito Prêmio Nobel da Paz!

Ah, esqueceram-se as malas de dinheiro, tanto as que continham certas impressões digitais como a que era carregada pelo “homem de confiança” do chefe dos golpistas. Enfim, convém ficarmos atentos/as às votações dos “excelentíssimos” parlamentares, tanto na câmara, quanto no senado. E, sobretudo, no supremo, porque, é a partir de lá que o país é governado. São os amigos do supremo que estão acima da lei, inclusive da Constituição Federal.

Aliás, observando o nosso judiciário, aguerrido, fazendo greve pelo auxílio moradia, uma brava conquista conseguida a partir destas “amizades” e interesses, lembrei-me da Marina Colassant. Eu sei que a gente se acostuma, mas não deveria, Marina. A gente se acostuma a olhar o hábito e não ver o monge. A gente se acostuma a olhar para a toga e não ver a justiça. A gente se acostuma até a dizer que “tá ruim, mas tá bom”.

Como, se todos sabem que “o hábito não faz o monge?” Não faz. Se um indivíduo vestido de monge entrar num banco e se dirigir ao caixa, todos pensarão que efetivamente se trata de um monge, modificando a primeira impressão somente quando o indivíduo extrair de dentro da monástica manga um revólver calibre 38 e exclamar: é um assalto. O hábito não faz do meliante um monge, mas disse “monge” a quantos o viram ingressando no banco (COLASSANT, 1980, p. 21).

Os que matam o corpo, mas não podem matar a alma, o sonho, a ideia, o projeto, não têm mesmo este poder.

Porém, eles continuam matando os corpos. E corpos negros, femininos, jovens, pobres e inocentes. Quando a gente ver inocentes sendo perseguidos e provas contra eles serem forjadas, enquanto criminosos, com largas e vantajosas provas – áudios, vídeos e depoimentos – sendo inocentados e elogiados pelas cortes e pelos magistrados, pelos excelentes serviços prestados à nação, a gente se pergunta: meu Deus, que país é este? Que mundo é este?

Que justiça é esta? Aonde iremos parar?

O que estamos dizendo que são valores, para um país com mais de cinquenta milhões de jovens? Marielle deixou de ser vereadora do PSOL e agora é mártir. E os seus assassinos, tanto os que puxaram o gatilho, quanto os que mandaram puxá-lo, não passarão de assassinos. Sejam presos e punidos ou não. Covardes será sempre o seu sobrenome.

A dor, o sofrimento, a perda, são indescritíveis e irreparáveis, mas, como diz o psiquiatra austríaco, Viktor Frankl:

“Sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante em que encontra um sentido, como o sentido do sacrifício” (FRANKL, 2006, p 101).

Marielle foi sacrificada no ritual hoje naturalizado em nosso país. É assim, como fizeram com ela, que se esconde a constatação do fracasso ou da insuficiência dos meios empregados pelo Estado, para garantir a segurança. Mulher, negra, pobre, defensora dos Direitos Humanos. A única característica que distingue o caso Marielle de outras milhares de execuções é o nível acadêmico. Através de programas com cem por cento de bolsa, ela ingressou na PUC-Rio e conseguiu se formar em Ciências Sociais. Depois, fez mestrado na Universidade Federal Fluminense.

Ainda temos pessoas, inclusive se dizendo cristãs, que defendem a pena de morte e o armamento da população como formas de superar a violência. E ainda vemos pessoas que dizem ser cristãs contrárias a uma Campanha da Fraternidade que propõe a superação da violência. Doem-lhes os tímpanos da indiferença e da vingança quando ouvem a palavra “Fraternidade”. Como diz uma de nossas canções: “Mataram mais uma irmã”. São as conveniências de uma (in) Justiça em que “não vem ao caso” descobrir ou revelar a verdade.

A vida e a sua dignidade são enterradas nas valas comuns, junto a pessoas negras e pobres que insistem em se manter humanas. E quem se mantém capaz de indignar-se é executado pelos que perderam a própria humanidade. A pergunta, que atravessa séculos e que não quer calar, vem de Bartolomeu de Las casas, (1474-1566), “Com que Direito? Ou ainda pode ser reinventada: “Em nome de quem?”.

As consequências de um cristianismo imperialista, que colonizou a leitura da Bíblia e pregou a teologia/ideologia em nome da qual os poderosos mataram Jesus. Só que com uma agravante: o fazem em nome de Jesus. O meu critério de escolha e as minhas referências me levam para bem próximo do que diz o Arcebispo de Curitiba, Dom José Antonio Peruzzo:

“No entanto, há também a questão espiritual: se o meu irmão está com fome, é meu problema espiritual. Se meu irmão não compreende o que significa fraternidade, quem compreende é chamado a testemunhar” (Revista Voz da Igreja, março/2018, p.3).

Se meu irmão ou minha irmã não têm consciência cristã, eu não sou obrigado a fazê-los tê-la, mas tenho a obrigação de alertá-los.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB –, uma das instituições mais respeitadas deste país, faz, na Campanha da Fraternidade deste ano, importantes denúncias e anúncios. A proposta é superar a violência, porque as múltiplas formas de violência estão abundantemente expostas. Vejamos apenas alguns dados que nos ajudam a perceber que a execução de Marielle é uma tragédia anunciada, mesmo sendo uma rotina e uma prática comum à Casa Grande.

Os dados da violência

Os dados a seguir são do Texto Base da Campanha da Fraternidade. Apesar de possuir menos de 3% da população mundial, nosso país responde por quase 13% dos assassinatos no planeta. Em 2014, o Brasil chegou ao topo do ranking, considerado o número absoluto de homicídios. Foram 59.627 mortes, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Mostra-se razoável a suposição de que não se resolve a questão da segurança sem ações claras e determinadas no campo da educação, da saúde, do esporte, da assistência social e da cultura.

Estudo divulgado em julho de 2017 revela que, pelo menos, 66 defensores dos direitos humanos foram assassinados no Brasil em 2016. Uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, em 2015, o país registrou 45.460 casos de estupro. Entre jovens de 15 a 24 anos, os homicídios são a principal causa de morte. Dados referentes ao ano de 2011 mostram a gravidade da tragédia. Naquele ano, houve, em todo o país, mais de 52 mil mortos por homicídio. Desse total, mais da metade das vítimas eram jovens (52,63%). Dentre tais jovens vitimados, a imensa maioria era composta por negros (71,44%).

A impressão que fica é a de que quem se contrapõe aos interesses dessa república corrupta e classista, bem como racista e neste momento rendida aos interesses do capitalismo internacional, será sempre eliminado, executado, para que ninguém ouse dizer que somos iguais em dignidade. Para os poderes constituídos no Brasil hoje, a corrupção é uma virtude e a honestidade é um desvio.

A famigerada, para dizer o mínimo, Operação Lava Jato, deixa como grande objetivo, plenamente alcançado, destituir do poder, via golpe na democracia, uma presidenta honesta e que, ao descobrir os esquemas de corrupção, sobretudo da Petrobrás e de Furnas, mandou interrompê-los. E tudo o que aconteceu em seguida foi decorrência disso.

Tentar esconder, omitir e justificar perante o povo o que é impossível de ser escondido e omitido (pelo menos por muito tempo) é algo injustificável. Seria por isso que matar e mandar matar é a única solução, se não a mais utilizada?

Uma canção das Comunidades Eclesiais de Base nos diz, “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão”. Faço-me uma destas pedras e falo. Será que vão inventar algum desses enredos covardes que os assassinos sempre inventam, geralmente os mandantes, para desqualificar a vítima e dizer que ela mereceu morrer?

Por isso, Marielle vive e viverá para sempre nos sonhos daqueles e daquelas que se mantêm capazes de amar. A cruz mais pesada para uma pessoa cristã carregar é a sua consciência cristã.

“Não tenham medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mateus 10,28).

Fonte: Texto de João Ferreira Santiago, teólogo leigo, poeta, militante e integrante do CEBI-PR. É autor de “Entre o Sol e Lua – Um eclipse de amor e poesia”, à venda com o autor. Curitiba, 16/03/2018.

Foto de capa: Revista CULT.

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