por Tânia da Silva Mayer via Dom Total*
O fascista é o juiz das verdades que elegeu para si, e, no campo religioso, vê-se como detentor da compreensão que o próprio Deus teria do mundo e das relações mundanas.
Uma notícia compartilhada nas redes sociais chamou bastante atenção na última semana. Um site evangélico trazia uma matéria a respeito de duas lésbicas casadas que se tornaram pastoras de uma Igreja batista tradicional de Washington, nos Estados Unidos. A matéria destacava que o fato surpreende porque as pastoras não haviam aberto a sua própria Igreja inclusiva, mas eram incluídas no ministério pastoral de uma congregação tradicional, a Calvary Baptist Church. Na reportagem, a representante da Igreja destaca o perfil progressista da instituição, que se posicionou favorável ao fim da escravidão no país e que reconhece a importante contribuição das mulheres em diversos âmbitos da vida eclesial, bem como o testemunho das pastoras, condizente com as prioridades da congregação evangélica.
O fato, por si mesmo, desperta a atenção, porque as tradições cristãs são historicamente machistas e patriarcais e, mesmo nas tradições evangélicas, as mulheres enfrentam muitas barreiras na participação efetiva na religião. Depois, porque as pastoras apresentam sexualidade divergente da heteronorma, o que é bastante problemático entre as Igrejas tradicionais, que emergiram ou não da Reforma. Pessoas não heterossexuais são taxadas de anormais, tendo que conviver silenciosamente e anonimamente com a sua sexualidade divergente no interior de comunidades. Mesmo assim, é importantíssimo destacar que, ao menos no Brasil, algumas tradições evangélicas estão anos luz do catolicismo nas discussões sobre gênero. No tocante ao discurso, o catolicismo, apesar da linguagem pastoral do Papa Francisco, ainda apresenta uma fala irresponsável para os nossos tempos.
O casal de pastoras é, sem dúvidas, uma novidade a ser assimilada com o tempo e com outros acontecimentos semelhantes. Mas um detalhe, profundamente relevante, deve promover a reflexão acerca dos discursos fascista das Igrejas e das fés. Eles podem ser ouvidos dos púlpitos autorizados das congregações, e, também, dos comentários, falas e discussões dos que se denominam fiéis. Por isso, ao lermos os comentários à matéria sobre as pastoras lésbicas, é fácil identificar a ideologia fascista que os subjazem, advogando verdades de fé não respaldadas pelo conjunto dos textos sagrados, ritos e símbolos de suas Igrejas. Factualmente, a internet revela e dá abertura as mais diferentes linguagens geradoras de compreensões e posturas, muitas das quais propõem a segregação e a eliminação do outro, diferente de mim.
Entre outras coisas, o fascismo pode ser identificado através de posturas assumidas com relação aos outros, mas não só, também em linguagens que formatam ações e visões de mundo que excluem as alteridades. Segundo Márcia Tiburi, o fascista é o produto do fechamento em si mesmo e da não abertura ao diálogo. Para a filósofa,
O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou o seu modo de ser. Sua falta de abertura, fácil de reconhecer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo que lhe serve de certeza contras pessoas que não correspondem à sua visão de mundo preestabelecida. A outra pessoa é o que o fascista não pode reconhecer como outro. O outro é reduzido a uma função dentro do círculo no qual o fascista o enreda. Talvez como a aranha que vê na mosca apenas o alimento que lhe serve e que precisa ser capturado em uma teia. Mas essa imagem seria ingênua, pois o fascista é capaz de olhar para o outro com tanto ódio que até mesmo perde o senso de utilidade. O outro negado sustenta o fascista em suas certezas. O círculo é vicioso. A função da certeza é negar o outro. Negar o outro vem a ser uma prática totalmente deturpada de produção de verdades[1].
Precisamente, é possível identificar os traços da ideologia fascista nos comentários à matéria. Ao se referir ao ministério das pastoras casadas uma pessoa comentava, “acho que tem coisas que até o demônio fica impressionado”, outra dizia, “a coisa está do jeito que o demônio gosta”, e outra pessoa afirmava “querem permanecer no pecado com máscara de ovelha”. Nessa última fala, percebe-se uma tentativa de diminuir a experiência das duas mulheres a uma prática falsa, pois elas, “as inimigas”, uma vez que suas práticas agradam ao demônio, opositor de Deus, usam uma “máscara de ovelha”. Tudo isso é afirmado enquanto se defende que são pecadoras. Outra fala sentenciava que isso “não agrada ao Senhor”. O fascista é o juiz das verdades que ele elegeu para si, e, no campo religioso, ele se vê como detentor da compreensão que o próprio Deus teria do mundo e das relações mundanas.
Um comentário que corrobora isso afirma que “elas podem ser chamadas de pastoras, podem assumir púlpitos, podem ser nomeadas, podem fazer tudo. A única coisa que não poderão fazer é entrar no céu”. O que percebemos com isso é que o lugar religioso pode favorecer, e muito, o discurso fascista autoritário, incapaz de dialogar com as diferenças, propagador do ódio que sentencia o aniquilamento do outro que não me serve. Por isso, os crentes, alijados da Palavra do Evangelho, tornam-se os juízes prontos a excluir do Reino quem propõe um pensamento diferenciado do deles, eles que são “a verdadeira Igreja de Cristo”. Nessa baila, outro comentário interessante argumentava a respeito de qual seria a bíblia que as pastoras iriam utilizar nos seus sermões, uma vez que a bíblia, “nosso livro de fé e conduta condena a homossexualidade”. De fato, é interessante a apropriação feita ao texto bíblico pelo fascista. A bíblia não é mais a Palavra de Deus, proclamada na liberdade aos ouvintes que desejam ouvi-la, mas um livro de inquisição, pronto para ser deturpado aos critérios que convém aos autoritários.
É urgente identificar e eliminar o fascismo dos discursos sobre gêneros dos cristãos e das cristãs, porque essas linguagens não correspondem ao Evangelho de Jesus, que é a Palavra de amor à humanidade. A verdade a qual devemos nos abraçar, sem correr o risco de perdê-la, é a verdade do Amor, compreendido desde os ensinamentos, gestos e palavras de Jesus. Quem vive desse amor, aprende a deixar cair por terra as pedras que trazia nas próprias mãos, para reduzir o outro a nada.
Referências:
[1] TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 24.
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Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Publicado por DomTotal.