texto de Gabriel Rocha Gaspar via Afroências*
Por volta de 1350 a.C., quando Akhenaton decidiu que Aton era o único deus existente e decretou a morte de todo o resto do panteão egípcio, pela primeira vez na história conhecida, sangue correu em rios por motivos estritamente religiosos. Antes disso, quando divindades diversas compartilhavam a atenção da espécie humana, não ocorria a ninguém matar outra pessoa por adorar um falso deus. Afinal, não havia a ideia de um deus totalitário, responsável por toda a criação. Deuses eram complementares, como pessoas. Quem se ocupa da pesca não pode caçar ao mesmo tempo; da mesma maneira que quem mantém a água sobre o oceano não pode providenciar que frutos germinem da terra. Quando, por decreto, Aton torna-se onisciente e onipotente, todos os outros deuses deixam de ser operários da harmonia cósmica e convertem-se em falsos ídolos.
Assim nasce a intolerância religiosa, conta o egiptólogo alemão Jan Assmann, no livro Moisés, o Egípcio, de 1997. A intolerância religiosa é fruto e característica inalienável do monoteísmo. Esse é um vício de origem da nossa maneira de pensar. Fomos cognitivamente construídos em torno do monoteísmo e, consequentemente, da intolerância. Mais de 3 mil anos depois, nossa sociedade vive sob o postulado de Akhenaton: tudo que não é Deus é diabo. Logo, deve ser eliminado.
Esta maneira de pensar não se restringe à religião, mas permeia toda a nossa estrutura de compreensão do mundo. Quando constituímos nossas relações sociais em torno de três faculdades, leitura, escrita e cálculo, relegamos todas as outras faculdades a um lugar de sub-existência ou existência indesejada. Abdicamos de uma série de capacidades humanas – que hoje, face à iminência de nosso colapso como espécie, podem guardar a chave de nossa sobrevivência, como especula o neurocientista Jeremy Lent em The Patterning Instinct:A Cultural History of Humanity’s Search for Meaning (em tradução livre, O Instinto de Padronização: Uma História Cultural da Busca da Humanidade por Sentidos) .
Numa sociedade em que o mercado, a mão invisível descrita por Adam Smith, é um substituto imediato de Deus, relegamos o que está fora do mercado a este mesmo lugar de existência indesejada. O que não pode ser calculado precisa se tornar calculável para poder reivindicar existência. É assim com a arte, por exemplo, cuja relevância deve ser avaliada em cifrões; é assim com a felicidade, a ser quantificada por terceiros, de acordo com o potencial de consumo que um indivíduo ostenta; é assim com a beleza, calculada a partir do grau de proximidade estética com modelos milimetricamente produzidos em Photoshop; é assim com a fé, medida segundo o peso do dízimo. Algo que insiste em permanecer fora do alcance de nossa matemática mercantil veste a máscara do diabo e deve ser eliminado. É assim que a filosofia, mais abrangente do que qualquer gaveta disciplinar e determinante de nossa condição existencial, passa a ser vista como um empecilho desconfortável, um cisco no olho do progresso econômico.
Isso vale para ideias, mas também para pessoas. Uma vez que o lucro se estabelece como condutor da atividade humana, a sociedade se torna inerentemente incapaz de garantir à coletividade da espécie as faculdades necessárias à reivindicação de existência nesta mesma sociedade (ler, escrever e calcular), porque a educação foge à previsibilidade de curto prazo necessária ao lucro dentro de uma lógica competitiva global, que opera 24/7.
Cadeia é uma varinha de condão da burguesia, que transforma exclusão em lucro
É por isso que o número de prisões cresce de forma inversamente proporcional ao número de escolas. Quanto menos investimos na divinização dos seres humanos por meio da aquisição das faculdades utilitárias que elegemos como portadoras de existência potencial, mais diabos criamos. E, se criamos diabos, precisamos criar infernos que os comportem e tornem sua existência passivamente utilitária. “Utilitária? Cadeia não serve pra nada!” Claro que serve: serve para transformar em valor quem foi privado de gerar valor dentro da exploração capitalista. Se você não é capaz de agir dentro do sistema para gerar lucro ao 1%, o sistema age sobre você para garantir o lucro. Ou você acha que é pouca coisa uma licitação pra construção de presídio, outra pra alimentação, outra pra segurança privada, outra pra extorsão de parentes de presos, outra pra compra de armas e uniformes e outras tantas que nem imaginamos, tudo superfaturado? Cadeia é uma varinha de condão da burguesia, que transforma mão-de-obra recessiva, o exército de reserva do capitalismo, em dinheiro.
Em outras palavras, aqueles seres humanos que são economicamente inviabilizados pela precariedade educacional infligida em nome da manutenção da lógica da lucratividade são transformados em geradores passivos de valor por meio do encareceramento. Quem não se classifica para sofrer a mais-valia pseudo-voluntária proposta (pra cada vez menos gente) pelo mercado de trabalho é reduzido à total-valia dentro do inferno prisional. Quem não adquire as capacidades básicas para produzir commodities ou assets financeiros é diretamente transubstanciado em commodities e assets financeiros.
Ou seja, aqueles para quem o Estado guiado pela lógica mercadológica não concedeu faculdades divinas têm seus corpos expropriados e convertidos em objetos especulativos descartáveis. Presos são ativos financeiros de curto prazo enquanto calculadores-leitores-escritores são ativos financeiros de médio prazo. No longo prazo, os dois se convertem em lucro para o topo da pirâmide.
Só que, frente à lógica da competitividade, onde cada capitalista mediano deve vencer seus concorrentes diariamente, o médio prazo é longo. Para manter-se numa fileira intermediária da cadeia alimentar, é necessário dosar poucos ativos de médio prazo com muitos ativos de curto prazo. Ainda mais quando o mercado de futuros está ameaçado pela desestruturação incontornável do mercado de trabalho, auto-infligida pela automatização (robôs, que não consomem, produzem mais do que podemos consumir, mas eliminam os empregos, expropriando o poder de compra dos potenciais consumidores).
Neste sentido, o monoteísmo mercadológico é tão totalitário quanto o teológico. Do mesmo jeito que o inferno só pode existir dentro da igreja, a exclusão da economia de mercado existe dentro da economia de mercado.
Como o sistema econômico é totalitário e a escolha é entre a forma de servir o lucro (se voluntária ou involuntariamente), é plenamente compreensível que os excluídos queiram inconscientemente converter-se em commodity antes que o sistema o faça. Uma das maneiras de fazê-lo é tornar-se veículo de propagação ideológica para a lucratividade de mega-corporações, como no caso da contribuição mecânica à engrenagem das redes sociais, por exemplo. Ao tornar-se um digital influencer (ou outdoor humano) e entregar seu corpo ao Facebook, você gera valor de mercado para si próprio e evita ser transubstanciado em carvão para as fornalhas da indústria da morte.
A profunda contradição é que as fornalhas – talvez por conta da tácita (ou nem tanto) inspiração nazista da sociedade contemporânea de mercado – servem não como propulsoras de uma máquina produtiva qualquer, mas como um fim em si próprias. Como acontece com batatas em sobressafra, é mais viável economicamente queimar excedentes do que distribuí-los. É mais viável economicamente matar pessoas do que integrá-las à própria sociedade de mercado por meio da educação.
Ao invés de optar pela manutenção conservadora do nosso ethos cognitivo, baseado no tripé cálculo-escrita-leitura, tomamos a saída abertamente reacionária, que é rentabilizar o descarte do geometricamente crescente excedente humano. Se ainda acreditamos que somos parte de uma mesma espécie e habitamos um mesmo planeta (no andar de cima, há quem conteste essas afirmações), alguma dúvida de que nosso sistema social, econômico e político é biologicamente insustentável?
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Texto de Gabriel Rocha Gaspar publicado em Afroências.