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Já faz um ano… O Bumba e a morte seguem de mãos dadas

Já faz um ano...  O Bumba e a morte seguem de mãos dadas

Era para eu escrever sobre saúde para o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). Mas, infelizmente, não dá para apenas escrever sobre saúde. É verdade, estou falhando. Bem sei, prioridades são prioridades, mas com o desenrolar da semana fui levado a me lembrar de certos acontecimentos que mexeram comigo há um ano. Tal reviravolta ocorreu, na verdade, porque durante a semana me chegou às mãos uma ficha, pedindo posicionamentos e saídas das autoridades governamentais. Ocorre que alguns amigos e amigas na caminhada da vida, desalojados do antigo Morro do Bumba, precisam de apoio.

Digo isso porque na primeira semana de abril de 2011 estará se completando um ano da tragédia das chuvas em Niterói. É o primeiro aniversário de uma tragédia sem precedentes nesta cidade, onde as águas se precipitaram com tamanha intensidade que colocou em xeque o modo de vida do município. Eu, assim como os demais moradores, acabei sendo envolvido nisso. Senti as dores de tal precipitação.

O meu caso

As chuvas iniciaram quando estava dando minhas aulas na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro. Fui avisado de que a saída estava complicada. Os alagamentos eram extensos. Fiquei preso por uma hora nos alagamentos num ônibus, optando pela saída de metro e posteriormente pelas barcas em direção a Niterói. Eu e minha esposa pegamos as barcas que ligam o Rio de Janeiro a Niterói. Quando pisamos nas terras de Araribóia, a chuva já havia inundado quase todas as partes da cidade, de tal forma que os ônibus não estavam circulando, o que nos levou a ficar por quatro horas no terminal rodoviário. Foi quando a minha esposa arregaçou as mangas, indicando que fôssemos indo sob chuva e correnteza para nossa moradia no bairro de Santa Rosa.

Foi difícil a caminhada de quase dois quilômetros para casa. Vimos postes, morros, árvores, casas e apartamentos derrubados e destruídos. Já de manhã, quando chegamos em casa, as noticias não eram boas; mortes, destruição e muita chuva ainda caindo. Já sabíamos, mas tivemos a certeza de que a chuva levara vários morros e favelas de Niterói. Assim, depois de um dia de chuva intensa, o Morro do Bumba não resistiu e levou com ele centenas de pessoas.

E é exatamente disso que estamos comemorando o aniversário. O ideal era que não se precisasse lembrar. No fundo, o desejo era que isso não tivesse ocorrido ou, no máximo, que estivéssemos comemorando a reconstrução e a dignidade das vítimas. Mas não foi o que ocorreu. Não é isso que vem ocorrendo em nossa cidade; não mesmo. Desde os dias de chuvas até hoje pouquíssimo foi feito. Nem quero indicar diretamente as áreas que não foram exploradas pela mídia, mas que sofreram tanto quanto a região do Morro do Bumba. Nem preciso, pois o que vem ocorrendo com tais populações é no mínimo vergonhoso.

O Morro do Bumba e suas mortes

Em busca de respostas, falando-se diretamente sobre a localidade e seus antigos moradores, praticamente todos prejudicados, se destaca uma saída das autoridades niteroienses para as famílias sobreviventes daquelas perdas. Após uma alocação ou outra em programas assistenciais da prefeitura, as famílias desterradas chegam à última alocação oferecida, que é no mínimo simbólica. Foram alocados justamente num quartel, local utilizado pelo exercito brasileiro. Lá, se improvisaram barracas, que mais se parecem estábulos onde os bichos adormecem e comem. Os bichos vivem lá para são se mostrarem, para que engordem e morram rapidamente. Parece ser isso o que os governos almejam.

Aparentemente o desejo é que essas famílias sejam devidamente esquecidas. Parece ser um local interessante para que tais sujeitos/bichos não sejam vistos. Se não os vêem, não ocorre á denúncia. É um local bem mais fácil para a imposição do silêncio, para “abafar o caso”. O intuito parece ser mantê-los ali, fora do script da vontade pública, a fim de que os esforços pela sobrevivência de cada dia sejam engolidos. Mas parece que essas pessoas, aquarteladas sob a batuta do governo, não mais merecem identificação; não se precisa mais que sejam identificados. O quartel fica estrategicamente longe do acesso de boa parte da população niteroiense. Ele se localiza justamente entre os municípios de Niterói e de São Gonçalo, ou seja, numa área pouco habitada, pois de acesso complicado para os niteroienses. Portanto, é de se esperar que a maioria da população pouco se informe sobre aquelas famílias de desabrigados.

Retirar para longe um grupo de pessoas que sempre estiveram no nível de vida abaixo do digno, numa cidade que acalenta a vontade de vir a ser a que tem melhor qualidade de vida do Brasil, parece ser uma idealização interessante para a direita política conservadora niteroiense. Retirar de perto do centro ajuda a silenciar a opinião publica; ajuda no processo social de esquecimento coletivo, questão que a cada dia chama mais atenção no cotidiano de grandes metrópoles, como é o caso da grande Rio de Janeiro.

Acontece que ações como essas estão cada vez mais comuns. Principalmente no Rio de Janeiro, local onde no final do ano passado assistimos aos noticiários de jornais e de emissoras de televisão com o desfile de tanques, armas e balas das forças armadas, no intuito de impor a ordem estatal em algumas favelas. Investiu-se em tiros, invasões e mortes aos borbotões, por meio até das forças federais, no intuito do que se chamou “guerra contra o caos social das favelas incitado pelos traficantes de drogas”. No entanto, após tais políticas fascistas nefastas que continuamos a assistir nos noticiários e nas ruas, a ação que vem sendo constituída em Niterói com uma camada das famílias do Morro do Bumba é, no mínimo, curiosa.

Inicialmente, foram-lhes oferecidas moradias, mas depois se descobriu que no local para onde seriam direcionadas as famílias seria feito em monumento em prol dos próprios mortos da tragédia do Bumba. Isso é interessante! – para não dizer o contrário. Tais políticas vêm ocasionando a morte muito mais dolorosa dessas famílias ‘sobreviventes’ nos estábulos que foram alocados no quartel de Niterói-São Gonçalo. Fora o fato de existir também o estigma já muito fomentado de “favelados” para se referir às populações de baixa renda, o que faz com que essas sejam vistas, por pura ignorância, até como causadoras de risco à sociedade.

Não é de se assustar, portanto, que pessoas nas redondezas de Santa Rosa e até de Icaraí (bairros de classe media) digam que faz um ano que houve uma diminuição dos roubos na região. Também por conta disso, é curioso perceber o fato de que é mais bem vista a obra feita para efeito estético e de lembrança do que construir um espaço digno onde as famílias desalojadas possam viver. O melhor, no entendimento do poder público, é mandar tais famílias para a periferia, a fim de se desarticular as lembranças e os argumentos para lá de plausíveis e justos. No mínimo, parece que tais ações governamentais demonstram que nada será feito para essas famílias, que desde a queda de suas casas do alto do morro vivem na dependência da boa vontade dos que controlam a cidade e dos que doam de tudo, mas não aceitam a proposta do debate.

Finalmente, a saúde deles também é um ponto

Tocar neste assunto faz lembrar também da temática que amigos (as) e irmãos (as) do CEBI me propuseram, visto que os contextos se somam. Digo isso porque, se entendemos a saúde de forma ampliada, não só como algo ligado as doenças, mas ao bem-estar do ser humano como um todo, é sabido que desde as chuvas (e até antes dela) a condição básica de saúde desses sujeitos (tratados como bichos) está na berlinda. Sim, pois numa sociedade liberal-capitalista vê-se claramente que não se tem permitido um canto de terra a esses sujeitos. Que seja o local que eles já possuíam antes da tragédia, desde que assistido com políticas sociais sérias e não apenas paliativas, assistencialistas e eleitoreiras. Impossível negar que a dignidade seria mais presente do que aquartelados diante da labuta de tropas armadas.

Ora, sem terra e moradia, quem tem condição de vida? Que saúde esses sujeitos em desleixo social podem ter, se lhes faltam teto, água e até comida? Eu cá confesso que desde aquele desastre que afetou todos nós de Niterói, é impossível perceber o cair da chuva da mesma maneira. A todo tempo vem à mente os corpos – e o que restaram deles – colocados lado a lado no meio da rua e sob chuva para que se pudessem contá-los. Não dá pra esquecer o sepultamento dos corpos achados após dois dias de soterramento. Creio que não vou conseguir esquecer daquele cheiro. Não sai da cabeça; não sai do nariz!

Sim, confesso que tal cheiro é meu; já faz parte de mim. Faz parte das marcas da população niteroiense e, ainda mais, daqueles que, de uma forma ou de outra, sobreviveram à tragédia. Fica, pois, aqui a lembrança dessas famílias, que seguem destinadas teoricamente a sobreviverem a mais e mais tragédias cotidianas – vide a via crucis em que foram postas há um longo ano, sem quaisquer condições de dignidade de vida, com toda a sonegação da saúde que lhes deveria ser oferecida. E isso desde que a sorte de tais sobreviventes foi entregue aos governantes que mais parecem preferir que tais famílias estivessem debaixo de sete palmos de terra. Afinal, para uma cidade que almeja ser a melhor em qualidade de vida no país, lugar de gente como as do Morro do Bumba é no quartel, junto da polícia e das armas de um exército que verdadeiramente “limpa as cidades”.
 

Niteroiense, professor universitário e escritor. É autor de Nas veias correm esperanças…, publicado pelo CEBI em 2009. 

 

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