Neste espaço apresentamos músicas para animar a resistência, a reflexão e a meditação.
A canção escolhida para o dia de hoje pertence ao grupo porto-riquenho Calle 13, com participação de Toto la momposina, Maria Rita e Susana Bacca (da Colômbia, Brasil e Peru, respectivamente).
Em 2011, a música ganhou dois prêmios Grammy Latino: Gravação do Ano e Canção do Ano. O vídeo da música traz imagens gravadas em 2011 no Peru, além de gravações não utilizadas no documentário Sin Mapa, que o grupo fez durante uma viagem pela América Latina. Musicalmente falando, trata-se de uma mistura de salsa, cumbia e tango. (via Wikipédia)
“Não se pode comprar o vento
Não se pode comprar o sol
Não se pode comprar a chuva
Não se pode comprar o calor
Não se pode comprar as nuvens
Não se pode comprar as cores
Não se pode comprar minha alegria
Não se pode comprar minhas dores”
“Trabalho árduo, porém com orgulho
Aqui se divide, o que é meu é seu
Este povo não se afoga com as marés
E se derruba, eu reconstruo
Tampouco pisco quando eu te vejo
Para que recordem do meu sobrenome
A operação condor invadindo meu ninho
Perdoo porém nunca esqueço
Ouve!”
Interpretando a música em grupo:
Calle 13 – Latinoamerica : Somos todos filhos de tudo (por Felipe Hansell)
Em 2011, o grupo Porto-Riquenho, Calle 13, apresentou ao mundo o resultado de suas viagens pela América Latina através de uma composição que comoveu todas as fronteiras.
Um dos fenômenos artísticos mais bonitos que podem acontecer na música é quando um videoclipe promove o encontro entre a poesia e a narrativa de um documentário. E, definitivamente, este não é um fenômeno comum. O Grupo “Calle 13” alcançou essa façanha com a produção do videoclipe “Latinoamerica” em 2011 que, apesar de ter mais de 50 milhões de visualizações no Youtube, (e dois Grammy´s Latino) ainda é desconhecido para muitos.
Mas o que faz este trabalho ser mais importante do que tantos outros deste mesmo grupo?
Acredito que o primeiro conceito a absorvermos deste trabalho seria: “o poder devastador da simplicidade”. Se fizermos uma análise fria, vamos encontrar imagens que contam uma breve história sobre a rotina de um povo sofrido que não deixa de erguer a sua cabeça e que segue prosseguindo não importa a situação. Mas quando unimos os inúmeros cortes de imagem com a letra, nos damos conta do impacto cultural que isso gera.
Sabe aquele sentimento que você tem quando se depara com algo diferente? Pois bem.
Ao início do clipe, temos uma apresentação bastante simples de um radialista chamando o grupo para cantar a sua música. Em um estúdio onde as paredes são de barro, há um cartaz que, entre todos os outros objetos do cenário, chama atenção pelos seus dizeres: “En este momentos soy parte de tu dia”. A música tem início e é a partir daí que compreendemos que o clipe se trata de um protesto que varia seu discurso entre crítica social, construção da identidade de um povo e todos os valores e dores que constroem seu orgulho.
Os acordes latinos vindo do “ukelele” de Eduardo Cabra trazem beleza e tristeza ao mesmo tempo enquanto deciframos, mesmo sem saber muito, a força dos versos na forte pronúncia em castelhano de René Peréz. Há trechos encantadores como:
“Soy, soy lo que dejaron / Soy toda la sobra de lo que se robaron / Un pueblo escondido en la cima / Mi piel es de cuero / por eso aguanta cualquier clima”.
Ou até mesmo:
“Soy lo que sostiene mi bandera / La espina dorsal del planeta, es mi cordillera / Soy lo que me enseñó mi padre / El que no quiere a su patría, no quiere a su madre / Soy américa Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina”.
Nestes poucos versos acima já encontramos grande significado na música, entretanto, mais uma surpresa surge ao chegarmos no refrão e nos depararmos com um trio de vozes tradicionais de diferentes países. Primeiro, temos a voz de Toto La Monposina (cantora folclórica colombiana), logo em seguida, a brasileira Maria Rita e, por último, a peruana Susana Baca. A força deste refrão traz muito mais do que uma bela melodia. Temos aqui uma interpretação sem fronteiras que nos encanta na prática, deixando explícito o paradoxo valiosíssimo da diversidade cultural, onde toda essa infinidade de diferenças étnicas são justamente o que nos fazem iguais.
Ainda em tempo, não podemos prosseguir sem tomar nota dos versos deste refrão: “Não se pode comprar o vento / Não se pode comprar o sol / Não se pode comprar a chuva / Não se pode comprar o calor / Não se pode comprar as nuvens / Não se pode comprar as cores / Não se pode comprar minha’legria / Não se pode comprar minhas dores”.
Estes versos cantados em português pela Maria Rita e em castelhano pelas outras duas cantoras, falam de elementos que jamais poderão ser adquiridos ou usufruídos sem ser por aqueles que vivem por aqui e que, ao mesmo tempo, tudo isso é posse de todos que aqui vivem. Que não importa o quanto a América Latina tenha sido roubada nestes últimos séculos, há coisas que só existirão por aqui e que são essas que constroem nossas culturas.
Com poucas exceções, não conseguimos designar onde são as imagens, ou de que nacionalidade são os rostos que ali aparecem. Eles poderiam ser facilmente brasileiros, peruanos, uruguaios, não importa. A direção e produção do clipe, se preocupou muito em evoluir a individualização da pátria para um bem maior – o continente, no caso – As imagens poderiam acontecer facilmente em qualquer lugar da América Latina.
E isso pode gerar uma série de debates/questionamentos históricos e sociais. Como, por exemplo, falar diretamente da América Latina sem ao menos mencionar a existência de outros países do continente americano. Ou citar estrangeiros apenas para dizer que levaram dois gols do Maradona, como foi no caso da Inglaterra. Há também um ponto bastante peculiar se olharmos pelo ponto de vista brasileiro. Na verdade, foi um questionamento que me surgiu na primeira vez que ouvi a música:
Como é possível ser brasileiro sem ser latino-americano?
Essa pergunta é tão forte quanto o refrão da música se levarmos em conta que em muitos lugares, principalmente nos grandes centros, muitos brasileiros sequer se preocupam com seus vizinhos ou com todo valor cultural que compartilhamos, mesmo sem saber. Esta música pode servir como uma porta com a possibilidade de um retorno às suas origens, raízes. E podemos ir além se pensarmos que talvez fosse mais fácil construirmos nossa identidade cultural por aqui do que tentar copiar a identidade de outros lugares, com outras histórias, na ilusão de que isso solucionaria as coisas.
Ainda no plano dos questionamentos como resultado da música: Será que alguns de nós não continuamos a roubar o resto da sobra que outros deixaram para trás? Reproduzindo assim o que fizeram conosco durante tanto tempo? Podemos viajar por tempos e tempos pensando e especulando toda a semiótica das palavras contidas nesta música. A sobrecarga cultural presente em seus 5 minutos eleva-a, facilmente, à condição de hino (entre tantos outros) da América latina. A grande mensagem é que não somos filhos de uma pátria ou outra, a ideia é demonstrar que neste “continente”, “Somos todos filhos de tudo”. De cada costume. De cada povo. De cada crença. De cada santo. É toda essa mistura de culturas que nos acolhe, que nos cria, que nos inspira, que nos alimenta. E não importa o que o dinheiro possa comprar, ele não vai alterar suas raízes.
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Crítica sobre a música publicada por Obvious.