Estamos nos tornando uma sociedade estamental caracterizada pela ausência de direitos no trabalho, escreve Cesar Sanson, professor da área de Sociologia do Trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Eis o artigo.
Não faz muito tempo o presidente Jair Bolsonaro, ao defender a flexibilização da legislação de proteção social, afirmou que os trabalhadores devem escolher entre ter emprego ou direitos. De lá para cá tivemos a aprovação da lei da terceirização, a Reforma Trabalhista e a consolidação do enunciado de que o negociado prevalece sobre o legislado.
Note-se que a instituição de direitos associados ao trabalho no Brasil é recente, resultante de um capitalismo tardio e introduzido com muitas dificuldades. Setores do patronato industrial oriundos das oligarquias rurais e, acostumados a uma relação de trabalho fundada na servidão – trabalho escravo -, se mostraram extremamente refratários a toda e qualquer regulação na relação capital versus trabalho. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) fundada em 1928 se opôs ferozmente à instituição em 1943 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.
O retorno, portanto, a uma sociedade onde se verifica a ausência ou a frágil regulação de direitos associado ao trabalho é mais uma ocorrência normal na história brasileira do que uma exceção. A burguesia industrial brasileira e de resto sua congênere no campo, a burguesia agrária, nunca assimilou padrões civilizatórios na regulação entre o capital e o trabalho. Mais do que isso, militou fortemente contra qualquer legislação, bem como sempre foi contra os sindicatos e flertou com as ações de repressão contra os trabalhadores como se viu no golpe de 1964.
Resumindo: o pouco de direitos extensivos aos trabalhadores foi conquistado pelas organizações e imposto compulsoriamente ao empresariado nacional pelo Estado. O capital por aqui nunca aderiu ao princípio que cabe aos trabalhadores uma legislação de proteção social. Aceitou de forma renitente e na primeira oportunidade fez coro orquestrado pela sua extinção como ser verificou com o desmantelamento da CLT. Uma das maiores mentiras das últimas décadas foi a afirmação do empresariado de que a Reforma Trabalhista geraria milhares de empregos. Esse setor sabia que não se tratava disso, mas utilizou falsamente esse argumento para defender apenas os seus interesses.
Agora estamos assistindo a tragédia em que está se transformando o mercado de trabalho brasileiro, agravado ainda mais pela pandemia. Considerando-se os desempregados, os desalentados e os informais chegamos a 60% dos trabalhadores em situação de vulnerabilidade.
Há toda uma geração de trabalhadores que jamais irá acessar qualquer rede de proteção social, que nunca terá uma legislação que os proteja. Esses, como diz Castel, terão uma vida errática no mundo do trabalho, caracterizada por atividades intermitentes e precárias. Não é exagero, portanto, afirmar que estamos nos tornando mais uma sociedade estamental do que de classes. Com isso se quer dizer que estamos nos tornando uma sociedade caracterizada pela ausência de direitos no trabalho.
Na sociologia o conceito “classe social” é próprio da literatura marxiana e o conceito “estamento” da literatura weberiana. Em Marx, classe social configura um embate que se realiza entre forças sociais opostas, entre aqueles que possuem a força de trabalho e os que comandam essa força de trabalho. O que é próprio nessa tensão é a luta dos trabalhadores pela ampliação dos seus direitos. Associado, portanto, ao conceito de classe tem-se a luta por direitos. O conceito de estamento, por sua vez, tomando por referência Weber, não inclui a luta por direitos, já que os que se encontram em determinada fração social estão limitados a essa condição e apartados da outra fração. A posição na fração social congela qualquer mobilidade e alteração de status social.
É disso que se trata. Estamos condenando milhares de trabalhadores brasileiros a viverem num “retângulo” fechado, sem portas e janelas – o estamento -, onde viverão asfixiados por uma vida duríssima e presos uma dupla perversidade no mundo do trabalho, ora trabalhando muito e, ora trabalhando pouco ou sequer trabalhando, e tudo isso numa condição de impossibilidade de acesso a direitos.