coluna de Magali do Nascimento Cunha publicada por Carta Capital*
Quando a religião sustenta uma ideia de eliminação das diferenças
O termo “fascismo” está em alta no Brasil. Mais do que um xingamento, ele não se resume a sinônimo de extrema-direita ou ultraconservadorismo. Vem de fasces, feixes, “força pela união”, símbolo adotado por Benito Mussolini para o seu partido italiano a partir dos anos 1920. O nazismo, sob o comando de Adolf Hitler, pela mesma época, é outro destacado exemplo.
É ação política ancorada na devoção a um líder cultuado, de ideais nacionalistas e militaristas. Baseia-se na unificação do povo por meio do ideal de supremacia da raça branca e do masculino. É totalitário, com a imposição do domínio do líder ou do seu partido, uma autoridade sem limites que atua no controle da vida pública e privada, buscando regular todas as suas dimensões.
É ainda nacionalista, na idolatria da pátria e na expansão do seu poder, com hostilidade ao marxismo e suas vertentes – anticomunismo e anti-socialismo. As mídias são recursos importantes para disseminação destes ideais.
O sucesso do fascismo tem relação com a imposição do medo e da violência física como antídoto. Daí a incitação às agressões contra os declarados inimigos do Estado e de sua supremacia como corruptos, comunistas, minorias étnicas e sexuais.
Abusos físicos nas ruas e assassinatos são correntes e ações paramilitares são apoiadas pelo Estado. Nesse sentido, um governo fascista representa muito mais do que uma ditadura.
O que isto tem a ver com religião? Foi em 1970 que a teóloga alemã Dorothee Sölle cunhou o termo “cristofascismo”, a postura que combina cristianismo e fascismo. Sölle baseia-se no fato de as relações do partido nazista com as igrejas cristãs terem contribuído para o desenvolvimento do Terceiro Reich.
A história registra como evangélicos alemães (de maioria luterana) colaboraram com o desenvolvimento do nazismo. A propaganda do fim da República (vista pelos luteranos como poder irreligioso) e de um “cristianismo positivo”, voltado apenas contra os judeus, agradou este grupo. O apoio durou pouco com o avanço do totalitarismo e do controle que Hitler impôs sobre igrejas. Já os católicos se colocaram contra o regime no início e depois se omitiram ou se ajustaram por autopreservação.
Na Itália, o Papa Pio XI fez aliança com Mussolini para restaurar privilégios que a Igreja Católica havia perdido com a unificação italiana.
Para Dorothee Sölle, no tempo presente há posturas semelhantes da parte de igrejas e suas lideranças. O mesmo apoio a supremacias, totalitarismos, a políticas de intolerância e de ódio contra minorias por igrejas no passado estaria vivo entre cristãos no presente.
Isto por conta da fé em um Jesus individualizado e sentimentalizado, que despreza o profetismo que o caracteriza nos Evangelhos, além de silenciar e até zombar da atuação dele entre os pobres e marginalizados.
“Este tipo de religião”, diz a teóloga, “conhece a cruz apenas como um símbolo mágico do que [Jesus] fez por nós, não como um sinal do homem pobre que foi torturado até a morte como um criminoso político (…). Este é um Deus sem justiça, um Jesus sem uma cruz, uma Páscoa sem uma cruz – (…) uma traição aos desprezados, uma arma milagrosa a serviço dos poderosos”.
A pesquisadora refere-se às práticas de religiosos cristãos no espaço público em nome da supremacia branca e máscula: grupos racistas, cristãos e armados, movimentos cristãos “pró-vida” que agridem verbal e fisicamente mulheres que desejam ter o controle dos seus próprios corpos e chamam de “abortistas”, milícias que violentam fiéis não cristãos e cidadãos que vivem publicamente sua orientação sexual.
Há cristãos e lideranças que não praticam essas ações violentas, mas seu silêncio e omissão, como na Alemanha nazista, tornam-se apoio e promoção destas posturas corruptoras do Evangelho.
O cristofascismo também conquista fiéis pela propagação do medo. Espalha-se terror sobre conspirações de bandidos, de terroristas, de comunistas que justifica reações violentas “em legítima defesa” (“olho por olho, dente por dente”), o que contraria o Evangelho.
O que isto tem a ver com Brasil? Deixo para os leitores compararem o que foi descrito acima com os discursos e práticas em torno da campanha intitulada “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Um pastor escreveu em sua página do Twitter: “Estou absolutamente certo de que a igreja está escrevendo a página mais triste da sua história no Brasil. A história não poupará os evangélicos”. Para ele, “milhões de brasileiros estão escandalizados, membros das mais diferentes igrejas, aturdidos”.
Segundo pesquisas, 66% de evangélicos e 48% de católicos apoiam a campanha eleitoral baseada em armamentismo, valorização da tortura, combate a um comunismo ilusório, segregação de negros e indígenas, controle pelo Estado de questões privadas como sexualidade, retirada das crianças da convivência da escola, entre outros projetos que se opõem aos valores maiores do Evangelho.
É Deus usado de forma promíscua e sacripanta (aprendi esta palavra nestes dias com um bispo evangélico, que assim se referiu aos líderes religiosos cristofascistas). Jesus ensinou que não devemos julgar para não sermos julgados mas indicou que saberemos quem é quem pelos frutos.
Os sacripantas, Jesus classificou como gente vestida de peles de ovelhas, mas que por dentro são lobos devoradores (Mateus 7.15-20).
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Publicado originalmente no site de Carta Capital, 16/10/2018.