No último mês, a Articulação Nacional dos Povos Indígenas (Apib) havia antecipado, com acentuada temeridade, o desejo do governo Temer em atender os aliados ruralistas. Com uma ocupação no Palácio do Planalto, a Articulação dos Povos e Comunidades Tradicionais ressaltou que não aceitaria qualquer mudança no procedimento. Ao contrário, exigiu que o governo federal retomasse as demarcações e fortalecesse a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Nenhum órgão governamental, até o momento, procurou as organizações indígenas para tratar de tal minuta. A bancada indígena do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) chegou a se posicionar contra o possível decreto e exigiu que o governo não descumpra a Convenção 169 da Organização Nacional do Trabalho (OIT), que confere aos povos indígenas o direito à consulta prévia, livre e informada em caso de intervenções estatais que afetem seus territórios e suas vidas.
A minuta do decreto tem como título 'Proposta de Regulamentação da Demarcação das Terras Indígenas'. Conforme estimativas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o decreto, caso seja baixado pelo presidente Michel Temer do jeito em que se encontra, afetará diretamente 600 terras indígenas. O dado é baseado nas inúmeras restrições da minuta às demarcações em curso, impactando até mesmo terras já homologadas, além das demandas demarcatórias sem nenhum procedimento iniciado pela Funai.
Lançando uma pá de cal sobre os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, o governo não altera o que neles está disposto, mas os atrofia e inviabiliza. A minuta do decreto deixa evidente que o governo brasileiro pretende criar empecilhos variados à ocupação e posse dos territórios pelos povos. Por exemplo, se hoje um fazendeiro é indenizado por estar sobre uma terra indígena, a minuta propõe o contrário: o indígena será indenizado para não ocupar o que é seu por direito e jamais voltar a fazê-lo.
O governo trabalha, acompanhando passo a passo o raciocínio apresentado pelos ruralistas nos últimos anos, a falsa ideia de atualização do Decreto 1775, baixado durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1996, para atender o direito de "trabalhadores rurais da pequena e da média propriedade, que nela morem e cultivem a terra; os trabalhadores das partes ocupadas e produtivas de assentamentos de reforma agrária; habitantes de assentamentos humanos ocupados por população de baixa renda em áreas urbanas consolidadas (Código Florestal)", conforme a minuta.
Um outro ponto do possível decreto é que ele limitará ainda mais as demarcações: o marco temporal. A interpretação, baseada em uma condicionante à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e definida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) como não vinculante às demais terras indígenas, defende que apenas os povos indígenas que disputavam ou ocupavam terras reivindicadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, têm o direito a elas. Os demais, não.
"A gente foi expulso das nossas terras, por isso muitas comunidades não estavam sobre elas em 88. Governo sabe disso, então eles querem usar massacre que sofremos como arma contra a gente. Chamo isso de um novo massacre, tão ruim quanto os primeiros. Governo não atira na gente com arma, não mata com arma: atira e mata com esse decreto", afirma Eliseu Guarani e Kaiowá, integrante da bancada indígena do CNPI e da Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá.
Medidas mais radicais, caso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, aquela que transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo a demarcação de terras indígenas, tornam-se desnecessárias de seguirem adiante nas tramitações legislativas. O decreto abarca todo o conteúdo defendido pelos parlamentares ruralistas em quase 100 propostas de emendas, projetos de lei e medidas envolvendo o desejo do agronegócio, mineradoras e grandes empreendimentos em terras indígenas.