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Gigante da teologia. Entrevista com Gustavo Gutiérrez

Gigante da teologia. Entrevista com Gustavo Gutiérrez

Ele é um dos pais da teologia da libertação e, por isso, esteve por muito tempo na mira do Vaticano. Agora que Gustavo Gutiérrez foi recebido pelo Papa Francisco e a sua obra foi reavaliada, ele traça um balanço sereno do passado e delineia os desafios do futuro.
 
Vendo-o tão pequeno e enfraquecido, caminhando aos tropeços, apoiado em uma bengala nos claustros do Seminário Arquidiocesano de Seveso, na província de Milão, é difícil pensar que o padre Gustavo Gutiérrez está na origem causa de um movimento teológico que, ao longo das últimas quatro décadas, motivou a participação de milhares de cristãos nas lutas pela justiça social, perturbou o sono dos poderosos (a ponto de merecer estudos de centros conservadores dos Estados Unidos e conferências especiais dos exércitos de todo o continente americano) e provocou polêmicas na própria instituição eclesiástica, principalmente pela sua suposta dependência do marxismo. Mas quando esse padre de 85 anos abre a boca, logo se entende que nos encontramos diante de um "gigante" do pensamento cristão.
 
A reportagem é de Mauro Castagnaro, publicada na revista mensal italiana Jesus, de outubro de 2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
 
O "pai" da Teologia da Libertação veio à Itália para participar do 23º Congresso Nacional da Associação Teológica Italiana (ATI) e apresentar, com o arcebispo Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, no Festival de Literatura de Mântua, o livro escrito a quatro mãos intitulado título Dalla parte dei poveri [Do lado dos pobres].
 
Justamente esse diálogo com Dom Müller e o encontro posterior, no dia 12 de setembro, com o Papa Francisco em Santa Marta, foram definidos como eventos "históricos", porque nas décadas passadas, ao invés, o órgão da Cúria Romana encarregado de vigiar a ortodoxia não tinha mostrado muita compreensão com relação aos teólogos da libertação, emitindo em 1984 e em 1986 duas Instruções, em geral bastante críticas, e censurando de várias formas e medidas alguns autores, como os brasileiros Leonardo Boff e Ivone Gebara, ou o espanhol naturalizado salvadorenho Jon Sobrino.
 
É a partir do tema da amizade com Dom Müller que começa a longa conversa do padre Gutiérrez com a revista Jesus:
 
"Eu o conheci em 1988", explica ele, "quando o padre Josef Sayer, à época missionário em Lima e, depois, diretor até o ano passado da Misereor (a agência da Conferência Episcopal Alemã que lida com a cooperação para o desenvolvimento), convidou um grupo de professores alemães para um seminário ao qual me pediu para participar. O professor Müller, que ensinava teologia dogmática em Munique, no fim do encontro, me disse que a discussão lhe havia lembrado a importância da prática, razão pela qual me propôs vir periodicamente ao Peru para dar uma mão como professor. Durante 15 anos, ele sempre passou de três a quatro semanas das suas férias anuais ensinando no seminário de Cuzco, cujos alunos eram índios com uma escolarização muito baixa, e dedicando os fins de semana ao trabalho pastoral nas áreas rurais. Eu não vi muitos professores europeus passarem as suas férias assim! Naturalmente, quando ele se tornou bispo, ele só pôde voltar ao Peru apenas por períodos mais breves. Ao longo dos anos, a nossa amizade cresceu. Em suma, eu penso que ele é uma pessoa intelectualmente muito aberta que teve a simplicidade e a coragem de dizer que a perspectiva libertadora mudou o seu modo de conceber a teologia".
 
Eis a entrevista.
 
O senhor acredita que a avaliação positiva de Dom Muller se limite aos seus escritos ou também se estende à Teologia da Libertação como um todo?
 
Eu nunca lhe perguntei, e, com efeito, quando ele fala da teologia da libertação, ele logo me cita. Mas eu posso imaginar, sem me equivocar muito, que a sua avaliação não diga respeito apenas à minha reflexão, porque as posições de nós, teólogos da libertação, são essencialmente as mesmas, e eu nunca o ouvi criticar outro autor.
 
A Teologia da Libertação tentou reler a mensagem evangélica e a reflexão cristã "a partir do pobre". Nas últimas décadas, a partir do seu tronco, nasceram filões teológicos que tentam fazer o mesmo, mas "a partir da mulher", "a partir do índio", "a partir do homossexual" etc… O O que o senhor pensa?
 
Sempre me pareceu importante dispor de uma noção global, que para mim era a de "insignificante", porque é possível ser insignificante por falta de dinheiro, mas também pela cor da pele ou pelo fato de falar mal a língua dominante em um país, como ocorre no Peru para a metade indígena da população. Quando eu falo dos "pobres", portanto, eu não me refiro apenas àqueles que têm uma renda baixa, mas também "a quem não conta, não tem peso social", quem é marginalizado ou esquecido.
 
Já no livro Teologia da Libertação, eu falava também de etnias e culturas desprezadas, além, sobretudo a partir de 1975, da mulher, tanto que o documento final da II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla, no México, em 1979, retomou um texto meu que fala dela como "duplamente oprimida, enquanto pobre e enquanto mulher". Eu não aprofundei muito essa reflexão, porque sobretudo as teólogas fizeram isso, e não era necessário repetir o que elas dizem. A teologia feminista deriva da experiência da mulher, e isso me parece importante, me interessa muito. Mas não é uma teologia só para as mulheres, porque ela tem uma dimensão universal.
 
O Frei Betto frequentemente enfatiza que, na última década, na América Latina, subiram ao governo líderes ligados idealmente à "opção pelos pobres" e à Teologia da Libertação. Como o senhor avalia essa referência?
 
Eu desconfio muito dessas identificações. Certamente, o presidente do Equador, Rafael Correa, tem uma educação cristã, tendo estudado em Louvain com o padre François Houtart, conheceu o nosso mundo e fez referência a ele. Ao mesmo tempo, é um economista com as suas ideias. E o chefe de Estado de El Salvador, Mauricio Funes, mencionou muitas vezes Dom Romero, que, além disso, é um símbolo para todo o país. Os líderes políticos têm todo o direito de citar essas referências, porque isso significa que, para eles, são significativo, e isso me alegra.
 
A Igreja – eu falo da Igreja, porque as ideias que se atribuem à Teologia da Libertação também estão presentes também nos documentos do episcopado latino-americano – motivou, embora não sozinha, o interesse pela política pelos pobres, a justiça, os direitos humanos, e muitas pessoas se identificaram com a teologia da libertação, mas ela não é um clube ou um partido político no qual nos inscrevemos! Por isso, eu não acho que se possa dizer que um presidente da República esteja ligado a ela. Eu não tenho dúvidas – e isso me agrada – que a Igreja latino-americana nos últimos 40 anos influenciou muito a sociedade.
 
E, por outro lado, quanta repressão por parte dos governos foi motivada na luta contra a teologia da libertação! Portanto, ela está presente no ambiente político, para melhor ou para pior, mas há outros fatores que influem. Muitos anos atrás, um jornalista de Barcelona me pediu uma opinião sobre a revolução sandinista que tinha triunfado na Nicarágua, definindo-a de "obra de pessoas ligadas à Teologia da Libertação". Eu objetei dizendo que eu pensava que havia elementos mais importantes da teologia da libertação: se na Nicarágua houve uma revolução, isso se deve, acima de tudo, à violência e à injustiça da ditadura dos Somoza. Não devemos perder o senso de proporção! A Teologia da Libertação certamente motivou muitas pessoas, mas não se pode atribuir a ela todas as ações. Eu me alegro que ela tenha uma influência: faz-se teologia para mudar este mundo! Mas não é verdade que a América Latina mudou por seu mérito.
 
Há algum tempo o senhor está trabalhando sobre a questão do pluralismo religioso. Qual é a sua posição a respeito?
 
É um tema muito importante, sobre o qual eu estou refletindo há anos. Eu participei de vários encontros sobre o diálogo inter-religioso, mas nunca vi representantes das religiões animistas africanas, tão difundidas naquele continente, ou das indígenas da Amazônia, mas somente das "grandes religiões mundiais", ou seja, o Islã, o xintoísmo, o hinduísmo, o judaísmo, que tem relativamente poucos adeptos, mas é muito importante etc. Parece-me que isso não está certo se queremos construir uma hipótese científica sobre as religiões que seja convincente. O diálogo inter-religioso é muito interessante, mas para participar dele basta ter respeito pelos outros.
 
O problema real diz respeito à teologia das religiões, e se trata do estatuto de Cristo como salvador único e universal. Desagrada-me dizê-lo, mas eu penso que nenhuma teoria até agora elaborada pela comunidade teológica é satisfatória, e chama-me a atenção que Paul Knitter, que eu conheço bem e tem refletido e escrito sobre isso muito mais do que eu, no seu último livro, diz mais ou menos o mesmo, isto é, que o que produzimos até agora ainda são aproximações, e as hipóteses atuais só desfizeram um pouco a névoa.
 
Em particular, a tripartição "exclusivismo – inclusivismo – pluralismo", que até foi útil em um certo momento, me parece superada, até porque as posições existentes entre os teólogos não podem mais ser remetidas a essas três categorias. É preciso ter a modéstia de admitir que devemos aprofundar ainda o tema no plano teológico, o que, contudo, não é condição prévia para o diálogo com as outras religiões, indispensável para nos conhecermos. Sobre tudo isso eu também falei com o padre Jacques Dupuis, eu eu vi sofrer por causa das incompreensões por parte da Igreja. Dupuis morreu triste, depois de ter sido tratado muito mal…
 
Maltratado como o senhor…
 
Sim, eu também, em um certo momento. Mas depois aprendi que não é preciso perder o senso de humor, uma virtude que ajuda a não nos sentirmos o centro do mundo ou um exilado perene, a não nos levarmos muito a sério, e que impede que nos amarguremos. Eu gosto muito de rir e acredito que isso me ajudou nos momentos difíceis. É preciso seguir em frente, sem se sentir indispensável: até porque a reflexão teológica teria continuado mesmo sem mim. No entanto, eu nunca fui objeto de um processo, mas sim de um diálogo, mesmo que eu tenha tomado conhecimento dele quando ele já tinha iniciado!
 
Com que espírito o senhor viveu aqueles momentos em que percebia a desconfiança da hierarquia contra o senhor?
 
É desagradável ouvir que você é definido como "alguém que se infiltrou na Igreja para destruí-la". Que alguém diga que não está de acordo é normal, mas aquela acusação era maluca! A controvérsia, além disso, tinha uma forte dimensão midiática no Peru; nela se envolviam bispos e personalidades políticas. Eu dialoguei muito, não convenci ninguém das minhas posições, mas talvez eles perceberam que aquilo que acreditavam sobre mim não era verdade. Em Roma, onde são mais cultos, eles entenderam mais e me perguntaram sobre o marxismo só na primeira vez. Depois se concentraram em questões mais propriamente teológicas.
 
Foi um caso que durou diversos anos, até que, em 2004, o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu um breve texto para dizer que o diálogo tinha concluído de modo satisfatório: não tinham encontrado nada de errôneo. Foi um mau momento, não só para a relação com Roma, mas também para a situação no Peru. Mas eu sou teimoso e constantemente busquei que me explicassem o mérito das críticas, porque isso também serve para os outros, em vez de me submeter sem discutir ou então romper o diálogo.
 
A eleição do Papa Francisco e o seu desejo de "uma Igreja pobre para os pobres" levou muitos a falar de "revanche" da Teologia da Libertação. O que o senhor pensa? E quais seriam os desafios diante do novo papa em sua opinião?
 
O papa ama os pobres porque leu o Evangelho e o compreendeu. Pode até ser que ele conheça a teologia da libertação e, se ela o ajudou a aproveitar essa importante perspectiva cristã, melhor! Mas o desafio dos pobres está há muito tempo presente no horizonte da Igreja, senão não se entenderia o martírio que temos experimentado na América Latina, começando por bispos como Enrique Angelelli, na Argentina, Óscar Romero, em El Salvador, e Juan Gerardi, na Guatemala. Construir essa "Igreja pobre para os pobres" é uma grande aposta.
 
E que consequências ela tem?
 
Dizer que a pobreza é um grande desafio para a Igreja implica em fazer mudanças. Por exemplo, deve-se afirmar com maior força em cada país a necessidade de que as necessidades dos pobres sejam a principal preocupação política, mesmo que sem propor programas concretos, porque isso cabe à sociedade civil e política. E o problema da pobreza não se reduz ao aspecto econômico, mas envolve, por exemplo, a diversidade cultural, como é evidente no Peru, onde a maioria da população tem raízes indígenas. As situações variam de país para país, e as propostas devem ser muito concretas. Estou convencido de que assumir a perspectiva dos últimos muda o comportamento dos cristãos. Sempre se fala da América Latina como de um "continente católico", mas essa imensa pobreza põe dúvida que ela o seja realmente, porque a nossa fé não se reduz a cumprir algumas obrigações religiosas, que têm pouco sentido se não são acompanhadas pela luta pela justiça. Todos os cristãos deveriam compartilhar o compromisso com a dignidade das pessoas, com os direitos humanos.

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