“L’amour est à réinventer, on Le sait”
“O amor deve ser reinventado, o que sabemos dele”
Arthur Rimbaud
Em 1989, Barbara Kruger questionava a autonomia das mulheres sobre seus corpos na obra “Your Body is a Battleground“ (Seu corpo é um campo de batalha). O amor é um sentimento que se inscreve no corpo, neste campo de batalha que é o corpo. Desvelar a batalha por autonomia e liberdade que se dá no corpo da mulher é essencial para analisar politicamente o amor.
Shulamith Firestone, em “A Dialética do Sexo”, afirma que um livro feminista que não trate de amor seria um fiasco político. Mas falar de amor no campo político gera certo pânico. O amor deveria ser descrito, ou melhor, recriado unicamente pelos cânones da literatura – e não analisado politicamente. Não por acaso, as práticas de amor recriadas na literatura, no cinema e na televisão são mecanicamente reproduzidas. A cultura ensina e universaliza práticas de amor, até que elas desapareçam. Até que as práticas de amor se confundam com o próprio amor.
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As práticas de amor impostas às mulheres muitas vezes convergem para a capacidade de abrir mão da própria singularidade pelo outro. É doação. Doação de tempo, de energia psíquica, do corpo e, em última instância, da própria vida. É ter a autonomia e a liberdade ainda mais reduzidas. É essa a batalha invisível que as práticas de amor envolvem.
Numa das cenas clássicas da literatura alemã, um jovem se apaixona por uma mulher no momento em que a vê alimentando várias crianças. Ele se apaixona pela mulher capaz de se doar. Capaz de ser maternal. Existe um esquema perverso de recompensa (reconhecimento) e punição (solidão) que determina violentamente um estereótipo de amor para as mulheres. A mulher que se doa sem reciprocidade (e que corresponde a um determinado padrão estético) é a mulher “amável”.
Essas práticas de amor naturalizadas estão na base da divisão sexual do trabalho e, consequentemente, da exploração das mulheres. O trabalho doméstico é imposto como prática de amor. O cuidado com a família é imposto como prática de amor. Abrir mão de ser sujeito do desejo é imposto como prática de amor às mulheres.
O teatro do amor ainda é escrito e dirigido por homens. Para mudá-lo, não é suficiente que mulheres protagonizem algumas cenas: tudo precisa ser reinventado. Inclusive, se as cenas serão protagonizadas apenas por mulheres. O teatro do amor não pode ser heteronormativo.
O amor reinventado
Em “O Elogio ao Amor”, Alain Badiou afirma que mais do que defendido, o amor precisa ser reinventado. Essa defesa desesperada do amor é, na verdade, a defesa de práticas amorosas patriarcais.
É claro que reinventar a peça amorosa sem ensaio algum, sem papéis fixos, sem marcações, envolve riscos. Não o risco físico. Mas o risco daquilo que se apresenta como novo. O risco de desafiar estereótipos de gênero naturalizados, que conservam o poder no campo masculino. Esse risco mútuo desafia o individualismo liberal em que o risco é sempre o risco do outro – e o outro é sempre a mulher.
Assim como estereótipos de gênero não podem determinar as práticas de amor, essa falsa segurança não pode ser a sua norma. A real ameaça ao amor não é a sua politização, mas esse amor securitário (para os homens) fundado em marcações patriarcais.
Jacques-Alain Miller propõe um amor em que se aprenda indefinidamente a linguagem do outro, tateando, buscando chaves. Um amor que não é voltado para o conforto e o consumo, mas para a descoberta e doação mútuas.
O amor não é só um ato político; é um ato revolucionário. É uma aposta depositada no acaso. Não é um investimento rentável, seguro – é mesmo um desafio à mentalidade liberal. É experimentar o mundo a partir da diferença e não da repetição de padrões previamente estabelecidos. É arriscar o impensável. É a abertura radical ao novo.
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Fonte: Texto de Daniela Lima em Festival Marginal. Publicado em laryssafgc.wordpress.com, 24/08/2015.