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Existem discípulos e discípulas? Um olhar diante do espelho da fé (Mateus 16,21-28) [Robson Luís Neu]

Reflexão do Evangelho
O Evangelho de Mateus surgiu possivelmente por volta dos anos 80-95 d.C., depois de mais de 50 anos de tradição oral sobre o movimento de Jesus de Nazaré, que se mantinha viva nas comunidades cristãs da Galileia, Síria e Antioquia.

Com o decorrer dos anos, a tradição eclesial deu ênfase a uma sentença de Jesus a Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja.” (Mt 16,18) Esta sentença surge depois de uma bela confissão de fé de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Essa é uma das mais precisas definições e confissões teológicas a respeito de Jesus, conservada na memória das comunidades através do Evangelho. A partir da sentença de Jesus, parece-nos que a proposta para o discipulado passa pela hierarquia. Contudo, outros textos mostram que não.

Os versículos 21 a 28 justamente mostram uma comunidade igualitária, em que discípulos e discípulas estão no mesmo nível, inclusive Pedro.

Assim são chamados a servir, sem uma estrutura hierárquica, sem opressores e oprimidos.

Dentro do processo de preparação ao discipulado, Jesus enfatiza sobre sua morte. Nas palavras do teólogo Werner Wiese, “Por trás de seu ministério está a necessidade de Deus para salvar a humanidade do círculo vicioso do maligno e da violência.” Pedro, que há pouco havia feito uma bela confissão de fé a respeito de quem era Jesus, agora mostra que de “boas intenções o inferno está cheio”. Para ele, Deus haverá de ser gracioso para com Jesus; morte não combina com triunfo, vitória, enfim, com o Reino de Deus.

Para Pedro, glória e morte não combinam.

Se, diante da primeira resposta de Pedro, Jesus o havia elogiado, agora a realidade é outra. Pedro precisa aprender a ser seguidor não só com palavras. O seguimento se dá com todo o corpo. Jesus o recoloca na condição de seguidor, e não o deixa mais na condição de condutor do discipulado. Pedro agora é pedra de tropeço, age como se estivesse representando o mal. Diante do projeto de Deus, anunciado e vivido por Jesus, não basta ter boa vontade e belas palavras, é preciso estar disposto a viver os sinais do Reino. Pedro é lembrado desta realidade duramente.

O seguimento a Jesus difere da lógica da vantagem. As condições impostas por Jesus para o discipulado exigem muito mais do que anunciam status. “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mt 16,24-25). Este é o núcleo do seguimento. Por isto mesmo, muitos e muitas são chamados e chamadas, mas poucos e poucas são escolhidos e escolhidas. Será por isso que muitas denominações religiosas cristãs têm falta de sacerdotes e sacerdotisas? Fazer memória destas palavras certamente mantinha as comunidades primitivas com os pés no chão. Diante das perseguições e das demais dificuldades, as comunidades viviam entre bonitas confissões de fé no culto e a realidade do dia-a-dia, com enormes tensões.

Parece-me que essa é a realidade conflituosa ainda hoje em nossas comunidades de fé. De um lado, ouvimos diariamente bonitas mensagens, com verdadeiras confissões de fé. De outro lado, os embates da vida, com suas decepções, seus sofrimentos, problemas existenciais, podem tornar-se pedra de tropeço. Assim como Pedro, somos tentados a negar o sofrimento como consequência de uma vida de fé. Mais fácil é deixar Deus e suas orientações para o domingo e, de preferência, limitá-lo às paredes do templo. Como se isso fosse possível.

Uma das tentações que pessoas de fé vivem em suas comunidades e também individualmente passa pelas intenções. Refiro-me à tentação de procurar com que Deus satisfaça as vontades pessoais e/ou grupais. Neste sentido, já não é mais Deus quem determina a vida. O teólogo Werner Wiese lembra:

“Somos tentados a usar a fé cristã para colocar Deus diante da carruagem de nossas imaginações, piedosas ou não.”

Jesus não seria mais o Mestre, mas o nosso discípulo, pois deve satisfazer as nossas vontades. As coisas do dia-a-dia são decididas e encaminhadas como se nada tivessem a ver com o ser cristão. Assim, cada vez mais vemos pessoas e denominações religiosas fazendo da fé negócio lucrativo. De semelhante modo, também já nos acostumamos com a fé como sinal de status, fortalecido pela hierarquia eclesiástica. Diante de tais casos, faz-se necessário ouvir novamente a sentença de Jesus:

“Vai para trás de mim, Satanás; tu és escândalo para mim, porque não pensas nas coisas de Deus, e sim nas coisas dos seres humanos” (Mt 16,23).

A memória dessas palavras de Jesus de Nazaré nos traz a certeza de que o seguimento de fé difere da lógica da vantagem. Ao mesmo tempo, questiona nossa própria fé quando nos faz pensar sobre “o preço a que estamos prontos a pagar” para viver a partir do Evangelho que rompe o círculo vicioso do mal e da violência.

A partir do modelo de discipulado apresentado por Jesus, parece estar implícita uma estrutura de comunidade que não depende do desenvolvimento de ordens e hierarquias eclesiásticas, tão comuns em nossos dias. Na figura de Pedro, somos confrontados com nosso próprio espelho de fé. A exemplo dele, enquanto discípulos e discípulas hoje, nós também confessamos nossa fé em Deus e em seu Filho Jesus, mas ao mesmo tempo, frequentemente e tão rapidamente, afastamo-nos daquilo que confessamos. E esta é uma luta que travamos diariamente, especialmente quando levamos a sério o Evangelho e a proposta do Reino de Deus como sinal de vida pessoal, comunitária e social.

Penso que, para toda pessoa cristã, as palavras de Jesus tornam-se não uma obrigação, mas uma necessidade diária. Mais necessárias ainda são para quem está no papel de liderança, orientador, orientadora, e carrega a tarefa de conduzir a comunidade nos caminhos de fé. Que as duras palavras de Jesus de Nazaré, o Cristo, nos incomodem e nos provoquem, assim como certamente desafiaram os seguidores e as seguidoras de Jesus nas comunidades das origens cristãs. Amém!

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