Dois projetos de lei (PL) que, entre outros pontos tratam da definição do conceito de família, prometem esquentar a discussão no Congresso Nacional neste final de ano. Pelo nome que receberam, muito parecidos – um Estatuto da Família e o outro Estatuto das Famílias – as propostas parecem ser iguais, mas na prática são completamente diferentes. A primeira é mais conservadora enquanto a segunda é mais progressista.
A que tramita na Câmara PL 6583/13 é o Estatuto da Família, de autoria do deputado da Assembleia de Deus/Madureira Anderson Ferreira (PR-PE), e define família como o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, por meio de casamento, união estável ou comunidade formada pelos pais e seus descendentes. A definição é a mesma que está no Artigo 226 da Constituição Federal. Já o PL 2.285/2007, do deputado Sérgio Barradas (PT-BA), propõe a criação do Estatuto das Famílias. Parada desde 2011, a proposta de Barradas propõe uma definição de família que inclui a união de pessoas do mesmo sexo. Há ainda o Projeto de Lei Suplementar (PLS) 470/13, da senadora Lídice da Mata (PSB-BA), que tramita no Senado e reconhece a relação homoafetiva como entidade familiar ao rever o instituto da união estável e amplia sua conceituação.
O relator do projeto de lei do Estatuto da Família, o deputado federal ligado à Assembleia de Deus de Taguatinga/DF Ronaldo Fonseca (Pros-DF), apresentou em 17 de novembro, seu parecer à proposta. Ainda não há data prevista para a votação do texto na comissão especial que analisa a matéria. Os parlamentares terão cinco sessões para apresentar emendas ao texto. Confira o parecer.
Para o parlamentar, não cabe a um projeto de lei ordinária alterar o texto da Constituição, pela qual “família” é o núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, por meio de casamento, união estável ou comunidade formada pelos pais e seus descendentes. “Uma lei ordinária não pode mudar uma definição contida na Constituição, que é a lei maior do País”, disse. “Meu texto vai repetir a Constituição federal”, completou. O relator também incluiu no substitutivo a previsão de internação compulsória para viciados em drogas ilegais e em álcool e prevê que a adoção só possa ser feita por famílias. "Conforme a definição do artigo 226 da CF, ou seja, por aquelas formadas por casais heterossexuais ou famílias monoparentais”. Ele ressaltou ainda que propostas de emenda à Constituição que tentaram mudar esse artigo do texto constitucional não avançaram no Parlamento.
Fonseca declarou: “Eu estou colocando no relatório a proibição da adoção [por casais do mesmo sexo]. Se o Artigo 227 ( da Constituição Federal) diz que a família é para proteger a criança, como é que dois homens, duas mulheres que são homossexuais que dizem ser pais, querem adotar? Adotar para satisfazer a eles ou a criança? A adoção é para contemplar o direito da criança, não do adotante”, justifica. O direito de adoção por homossexuais foi reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça em votação unânime em abril de 2010.
Desde fevereiro passado, a página da Câmara tem uma enquete sobre o projeto. Até o fechamento desta matéria, em 23 de novembro, a enquete já recebeu mais de 4,3 milhões de votos e pergunta se o/a internauta concorda com a definição de família proposta pelo estatuto. Até o dia 23 de novembro, 50,72% dos participantes votaram contra o projeto, 48,97% a favor e 0,31% disseram não ter opinião formada.
Ronaldo Fonseca nega que a divisão reflita o pensamento da sociedade brasileira. “Aquela enquete deve ser vista apenas pela força de mobilização e não de opinião. Uma [mesma] pessoa pode votar várias vezes, inclusive os ativistas homossexuais têm escritório só pra fazer isso, mas é interessante ver que a sociedade está mobilizada”, disse.
Sem citar fonte, o deputado diz ainda que há pesquisas que apontam que a sociedade brasileira, na sua maioria, quer que o conceito de família tradicional seja mantido. “Não é questão de perseguição, é que na proteção especial do Estado para a família em que está configurada a integridade da família, o Estado não pode simplesmente reconhecer que dois homens querem viver como família. Que história é essa? Dois marmanjos? Qualquer pessoa que se junta agora é família? Se duas mulheres querem fazer sexo, que façam, mas que não busquem a proteção do Estado”, diz.
Deputados que rechaçam a proposta tentarão protelar ao máximo a votação prevista para o fim deste mês. Se aprovada, ela segue para o Senado. Nomes na Câmara, como o de Erika Kokay (PT-DF) e Jean Wyllys (PSOL/RJ), vêm sendo voz e ouvido de movimentos atingidos pela proposta defendida por Fonseca. Presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABLGBTT) Carlos Magno Silva, mantém um diálogo permanente com esses parlamentares e afirma que a votação este ano poderia significar uma derrota para a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros). "Estamos tentando contato com os deputados para constituir uma Frente Parlamentar pelos Direitos LGBT forte e atuante", diz presidente da ABLGBTT.
A formatação do Congresso Nacional a partir do ano que vem também não é favorável. Enquanto a bancada evangélica cresceu, muitos parlamentares que levantavam a bandeira dos direitos humanos como prioridade não foram reeleitos. “ A gente nunca teve um quadro de representação tão conservador. Estamos tentando contato com os deputados para constituir uma Frente Parlamentar pelos Direitos LGBT forte e atuante porque a próxima legislatura vai ser de muito embate, de muita disputa política. Este setor [evangélicos] tem se organizado para impedir qualquer avanço no reconhecimento de direitos humanos”, afirmou Carlos Magno. No caso de um grupo misto, a ex-ministra da Cultura, Marta Suplicy (PT-SP), que está de volta ao Senado, e a senadora Lídice da Mata (PSB-BA) devem ser procuradas.
Magno disse ainda que não existe uma estratégia definida de atuação, mas afirmou que vão encontrar uma forma de evitar que a proposta mais conservadora avance. “Isso é um retrocesso. Vai na contramão de tudo que já avançamos no Brasil e em outros países. Não existe só um formato de família. Existem vários formatos de família”, criticou, elencando conquistas do movimento como o direito à adoção e ao casamento.
A união de casais do mesmo sexo foi reconhecida em maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução proibindo que os cartórios do país recusem celebrar casamentos civis de casais do mesmo sexo ou de converter em casamento a união estável homoafetiva.
Magno defende o texto que tramita no Senado, a PLS 470/13 . Chamada de Estatuto das Famílias – no plural- , é menos conservadora. O texto reconhece a relação homoafetiva como entidade familiar ao rever o instituto da união estável, amplia sua conceituação, sem que ela fique restrita à ligação formal entre homem e mulher. A mesma proposta retira toda a parte de família do Código Civil e a coloca em um estatuto próprio. Também polêmica , a matéria aguarda votação do parecer favorável do senador João Capiberibe (PSB-AP) na Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Casa.
Em relação ao julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo do Código Civil, que incluiu na jurisprudência o conceito de família formada pelos pares homossexuais, o relator deputado Ronaldo Fonseca afirmou que seu voto não tem a pretensão de confrontar sistematicamente a decisão do Supremo, mas de ficar restrito ao mandamento constitucional, pois, na interpretação de Fonseca, esta definição é uma prerrogativa do Congresso Nacional. Para Fonseca, é necessário diferenciar família das relações de mero afeto, convívio e mútua assistência, havendo ou não prática sexual entre essas pessoas. Para o deputado, apesar de o Estado não possuir religião oficial, todo o arcabouço jurídico que o constituinte coloca, incluindo-se a dignidade da pessoa humana, a igualdade perante a lei e demais direitos fundamentais, individuais e coletivos, é dado sob a proteção de Deus.