Para entender melhor este texto, temos que situá-lo no seu contexto dentro do Quarto Evangelho, o do Discípulo Amado. Cumpre lembrar a divisão literária e teológica deste Evangelho. Os primeiros onze capítulos formam o que é normalmente entitulado como “O Livros dos Sinais”, ou seja, eles relatam sete sinais (tradução melhor do que “milagres”) operados por Jesus.
Um sinal aponta para algo mais além, e os sinais relatados por João apontam para uma realidade mais profunda – eles revelam algo mais profundo sobre a pessoa e missão de Jesus. São eles: a mudança de água em vinho em Caná (2,1-11), a cura do filho dum funcionário real (4,46-54), a cura do paralítico em Betesda (5,1-18), a partilha de pães, (6,1-15), o caminhar sobre as águas (6,16-21), a cura do cego de nascença (9,1-41) e o sinal culminante, a Ressurreição de Lázaro (11,1-45), o texto de hoje. Como bloco, formam o Livro dos Sinais, e preparam os Capítulos 13 a 20, “O Livro da Glorificação”.
Desafiam-nos a ler por trás das palavras e imagens, ou seja, não parar no visível, mas descobrir o que sinalizam sobre a pessoa e missão de Jesus e, consequentemente, a nossa missão também. Portanto, devemos ter presente que o relato de um sinal sempre quer revelar algo sobre Jesus. Diferentemente das curas em Marcos, onde não se faz milagres a não ser que se tenha fé em Jesus, os sinais em João revelam uma verdade sobre ele e levam as pessoas a aprofundar a sua fé nele. Assim, no texto de hoje, não devemos centralizar-nos sobre a pessoa de Lázaro, ou sobre os pormenores da história, mas descobrir o que João quer dizer sobre a pessoa de Jesus e a sua missão, através dessa narrativa.
Talvez possamos dizer que o centro do relato se encontra nos versículos 21-27. Partindo da fé na ressurreição dos mortos, já corrente entre as camadas populares do judaísmo desde o tempo dos Macabeus, mas rejeitada pela classe dominante dos saduceus, João tece um diálogo entre Jesus e Marta, que culmina com a declaração que a Ressurreição e a Vida acontecem através do acreditar nele como o Enviado de Deus, que veio para que todos tivessem plena vida, dando a sua vida para que isso acontecesse (cf. Jo 10,10-11).
Vale notar que, no Evangelho de João, a primeira pessoa a professar sua fé no messianismo divino de Jesus é uma mulher, Marta. Nos Sinóticos, isso cabe a Pedro (Mc 8,29). Como a cegueira do cego de nascença servia para que a glória de Deus fosse revelada através da sua cura, revelando Jesus como Luz do mundo (Jo 9,3-5), a morte de Lázaro serve para revelar Jesus como Ressurreição e Vida (11,25-27).
Jesus traz esta Vida para todos, através da entrega da sua própria vida. O relato de João enfatiza que ele dará a sua vida para que todas as pessoas tenham a vida plena, colocando na boca do Sumo Sacerdote a famosa frase: “É melhor um homem morrer pelo povo do que a nação toda perecer” (11,50). A libertação total que Jesus trouxe não acontece sem que ele se esbarre contra os interesses dos poderosos da sociedade que procurarão conter esta libertação, matando-o. É a maneira joanina de dizer a verdade que Marcos sublinha quando ele faz Jesus dizer “se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). A verdadeira vida exige luta contra tudo que é de morte, de dominação, de exploração, de exclusão.
Notemos que, no fim da história, Lázaro é desatado dos panos e sudário – pois ele vai precisá-los quando passará pela morte. A Ressurreição de Jesus, que logo celebraremos, é diferente. O cap. 20 de João faz questão de mencionar que, quando os discípulos entram no túmulo vazio, eles veem o sudário e os panos no chão – pois Jesus não foi simplesmente ressuscitado, mas passou pela Ressurreição, para a vida definitiva. O que aconteceu com Lázaro simplesmente prefigura o que aconteceria com Jesus de uma maneira mais definitiva e, por conseguinte, com todos e todas nós.
Que a nossa fé naquele que é “a Ressurreição e a Vida”, que veio “para que todos tenham vida e a vida plena” nos leve, não à religião intimista e individualista, sem maiores consequências na vida comunitária, social, política e econômicas, mas a um engajamento na construção do mundo que Deus quer, o mundo da verdadeira “Shalom” – um conceito que vai muito além do sentido do termo português “paz”, para indicar a plenitude do bem-viver, tudo o que Deus deseja para todos os seus filhos e suas filhas, como nos lembra o tema do programa catequético-bíblico da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) nestes quatro anos: “Para que n´Ele nosso povos tenham vida”, o que implica levar a sério a Campanha da Fraternidade deste ano, em defesa das biomas brasileiras, elementos essenciais para uma vida plena.