Transcrevemos na íntegra entrevista concedida por Edmilson Schinelo ao Jornal Correio do Estado sobre o sentido da Páscoa. A entrevista foi publicada em 20/04/2014 em http://www.correiodoestado.com.br/noticias/a-solidariedade-ainda-existe-e-este-e-o-verdadeiro-sentido_213978/)
A Páscoa é um dos mais importantes momentos comemorativos das culturas ocidentais, tecida em denso simbolismo e marcos históricos da humanidade. Era a festa de passagem, comemorada há milhares de anos, no Hemisfério Norte, principalmente na região do Mediterrâneo, para marcar a chegada da primavera após o inverno. Como sabemos, embora os chocolates sejam muito saborosos, a relação deles com a data é algo criado na modernidade.
Convidamos o teólogo, professor Edmilson Schinelo, de Campo Grande, para abordar o assunto. Nesta entrevista, ele fala sobre a origem da Páscoa, seu verdadeiro significado, sobre como a data está presente em diferentes religiões, entre outras coisas.
Confira a entrevista.
Correio do Estado – Estamos no Domingo de Páscoa. O senhor poderia explicar o que esta data significa?
Edmilson Schinelo – A Páscoa é uma celebração de muitos povos. Muitos povos antigos já a comemoravam. Esta celebração, que chegou a nós, na sociedade brasileira, veio pelo caminho do judaísmo. Mais ou menos em 1.500, 1.300, antes de Cristo, os judeus já comemoravam duas festas: uma de caráter mais agrícola e outra de caráter mais pastoril. A primeira sempre era celebrada no início da primavera. Quando chegava a nova colheita, as comunidades agrícolas faziam um ritual de louvor às divindades, de agradecimento a elas, e jogavam fora o pão velho para começar uma vida nova, um ano novo, uma nova primavera, com um novo trigo, uma nova cevada. Então, durante um tempo, eles comiam o pão sem fermentar, até esperar que a farinha se tornasse fermento novamente. Era uma festa de louvor, de início da colheita, muito antiga. Outros grupos, também presentes em Israel, na Palestina, e de tradição mais pastoril, sempre que faziam mudança de um acampamento para outro lugar, em busca de outras pastagens, faziam também um ritual de agradecimento, de louvor e de celebração de mudança. Uma festa em que se matava um cordeiro e festejava-se com isso; aspergiam o sangue sobre o rebanho ou sobre as árvores para expulsar os maus espíritos e dar início a uma nova etapa. Estas duas festas adquiriram raízes na tradição de Israel e, com o elemento religioso da passagem, da saída, da libertação do Egito da escravidão do faraó, foram unificadas mais tarde numa festa só e se tornaram a celebração de passagem – a palavra Páscoa, em hebraico, significa passagem de uma situação para outra.
Correio do Estado – Então, a celebração da Páscoa aponta para uma mudança de comportamento?
Edmilson Schinelo – Necessariamente. O problema é quando a Páscoa é instrumentalizada pelo mercado – como também o Natal e outras celebrações religiosas – e se torna uma festa de vendas, de mercadoria, que é o que se faz hoje, com o chocolate e os ovos de Páscoa. Na verdade, isso é a negação da Páscoa. A Páscoa significa libertação de qualquer situação de opressão, de escravidão; então, não há como se falar de Páscoa de verdade se a religião é usada para manipular, para legitimar. Por exemplo, não há como a gente falar de Páscoa em Mato Grosso do Sul sem discutir a situação dos povos indígenas; não há como você falar de Páscoa quando as igrejas estão legitimando a homofobia, enquanto as igrejas estão legitimando a submissão da mulher. É hipocrisia falar de Páscoa se a gente não discute com seriedade a descriminalização do aborto. Não estou falando que sou a favor do aborto, ou contra; mas, enquanto o aborto é considerado crime no País, as adolescentes são criminalizadas, nunca os que as engravidam; elas são tratadas como criminosas. Não há como falar de libertação de Páscoa – e, para os cristãos, a Páscoa assume o sentido de ressurreição, porque foi na festa da Páscoa que o líder Jesus foi morto e, pela nossa fé, teria ressuscitado – sem mudança de vida, não é ressurreição.
Correio do Estado – A Páscoa está presente em todas as religiões? De que forma?
Edmilson Schinelo – Todas as religiões têm um tipo de passagem. Todas têm, podem não chamar de Páscoa, mas todas as religiões têm algum rito de mudança de uma etapa para a outra. E no judaísmo era na primavera, no mês de “Abib”. Era o primeiro mês, a entrada do ano-novo e da primavera. Todas as religiões têm, inclusive, nossos povos indígenas. A festa da chicha, a celebração do milho, da colheita, é um ritual de passagem de um ano para o outro.
Correio do Estado – A vida de Cristo ainda pode ser compreendida como um grande exemplo a ser seguido em nossos dias?
Edmilson Schinelo – Sim, e, num momento em que as juventudes precisam de referências verdadeiras, Jesus ainda é um referência. O problema é que ele foi desencarnado, a gente cultua demais um Jesus divino e se esquece do jovem Jesus de Nazaré, marginal e marginalizado, que cresceu na periferia no seu país – ele foi criado na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré. A capital foi destruída, a capital do sul, Jerusalém, não aceitava o pessoal do Norte. Então, se recuperarmos esta imagem de um Jesus humano, jovem, marginalizado, que, inclusive, consegue fazer um movimento de superação, propondo a igualdade e a partilha entre as pessoas, a referência é ainda muito maior para a juventude de hoje.
Correio do Estado – Existem provas que confirmem a ressurreição de Jesus?
Edmilson Schinelo – Não. Não existem e não é preciso. Normalmente, quem busca provas está dispensando a dimensão da fé. Então, o túmulo vazio – que os textos da época apresentam – e um pano que ficou ali, do lado, não são provas de ressurreição. Alguém poderia, simplesmente, ter desaparecido com o corpo. As aparições, tais quais nós temos na Bíblia, já são relatos teológicos elaborados pelas comunidades 60, 80 anos depois. Então, não existe prova, e não precisa. É a dimensão da fé que move as pessoas e que move o cristianismo nestes dois mil anos de história.
Correio do Estado – Por que o cristianismo deveria ser mais importante do que outras religiões que ensinam as mesmas questões fundamentais, como o amor e a caridade?
Ele não é mais importante. Esta visão exageradamente cristocêntrica é uma visão eurocêntrica. O cristianismo que chegou a nós é via Europa, que chegou com a espada e a cruz na mão. E se coloca como hegemônico, assim como Estados Unidos e Europa querem continuar mantendo a hegemonia no mundo. Deus se revela a todos os povos e a todas as culturas de forma diferente. Os mesmos valores que a gente encontra no cristianismo também encontramos no judaísmo, no próprio islamismo, que, para nós, é visto de uma forma muito preconceituosa. Sempre quando se diz que um árabe fez um ato de terrorismo, não se diz “um árabe fez um ato de terrorismo”; normalmente, a mídia diz “um muçulmano”. Mas quando um norte-americano faz um ato de terrorismo, soltando bombas, aí, não se diz “um cristão”, diz-se “os Estados Unidos bombardearam”. Quando é para falar dos árabes, a gente usa “muçulmanos”, e, quando é para falar do ocidente, a gente usa americano, inglês, e não “cristão”. Então, há valores e contravalores em todas as tradições religiosas, e não existe a posse de Deus. A divindade não se encaixa numa determinada religião, numa determinada cultura. Deus é mais.
Correio do Estado – Hoje, temos ovos de chocolate e coelhinhos simbolizando a Páscoa. Mas, em outros tempos, quais os primeiros símbolos desta data?
Edmilson Schinelo – O símbolo principal da Páscoa sempre foi o pão. O pão e o peixe. O cristianismo primitivo tem o pão como elemento principal de partilha. E o peixe era o alimento dos primeiros cristãos – inclusive, nas antigas grutas, esconderijos, nas catacumbas, o que a gente mais encontra é a marca do peixe como símbolo do cristianismo. E, evidentemente, o cordeiro, já celebrado no antigo Israel, no cristianismo, entrou como aquilo que passa a simbolizar o próprio Jesus, morto e ressuscitado. Na teologia do profeta Isaías, é relido como aquele cordeiro levado ao matadouro, para a salvação de muitos. Então, os símbolos principais da Páscoa para os cristãos são, evidentemente, um cordeiro, o pão, o peixe e o vinho, porque acompanham; afinal, é festa, é ressurreição.
Correio do Estado – E quando é que se passou a ter os símbolos atuais?
Edmilson Schinelo – Quando o cristianismo veio para a Europa, povos ainda não cristianizados – que, preconceituosamente, chama-se de pagãos – já os tinham. Por exemplo, os persas já tinham o costume, provavelmente, vindo da China, de utilizar o ovo nestes rituais de passagem. Porque, normalmente, você faz um período de inverno muito grande para um ano novo, uma vida nova, e assim é o ovo. Então, os chineses já tinham este costume de troca de ovos, e os persas o adotaram para povos não cristianizados, na Europa. Quando o cristianismo chegou à Europa, aproveitou-se deste elemento, houve diálogo. É o elemento da vida que parece morta. Ele se transforma, há uma metamorfose, como é o pintinho dentro do ovo. A partir do final do século, com a Revolução Industrial, o mercado, para vender seus produtos, transforma o ovo de verdade num produto comercial, com a venda do chocolate.
Correio do Estado – O significado da Páscoa se perdeu em nossos dias?
Edmilson Schinelo – Ele se perdeu, mas resiste ainda, bravamente. Eu acho que se a gente vê a solidariedade que as pessoas têm nas periferias das cidades, é a ressurreição acontecendo. Cada vez que eu vejo um mercado querendo ganhar dinheiro com chocolate, eu sempre me lembro de uma atitude daquela senhora que vai partilhar o pão com a vizinha. Isso é ressurreição, isso é vida. Cada vez que eu vejo um grande empresário explorando o meio ambiente, jogando agrotóxico para explorar mais, eu penso nas pequenas comunidades do interior do Estado que fazem a partilha ainda. As comunidades paraguaias gostam muito de preservar a tradição na Páscoa de repartir a chipa, a sopa paraguaia, como sinal de vida. A Páscoa é sinal de vida para todo mundo. Então, o que parece sufocado pela sociedade de mercado é mais ou menos como um fio de pólvora que está debaixo da terra. A solidariedade ainda existe, e este é o verdadeiro sentido da Páscoa. O mercado não vai dar conta de matar, porque é ressurreição.