Ecumenismo

Nossas transfigurações de cada dia

Photo by Caique Silva on Unsplash

por Marcelo Barros*

Alguns estudiosos pensam que, nos evangelhos, a cena da transfiguração era originalmente uma visão de Jesus ressuscitado e os evangelhos a transpuseram para o período em que Jesus caminhava para Jerusalém e ia ao encontro de sua morte. Eugen Drewermann, um exegeta alemão, pensa que esse modo de ver a fé e a missão parece a de um Cristianismo que dá mais importância à dor e à experiência do sofrimento do que à alegria e felicidade.

Na verdade, a transfiguração de Jesus é uma cena que pode ser simbólica, mas revela a vocação à qual Deus nos chama: a vocação para a felicidade e a alegria messiânica, ou seja uma alegria mesmo no meio da dor. Aquilo que Francisco de Assis chamava de “a perfeita alegria” que a comunhão com Jesus nos permite viver, mesmo no meio da cruz.

O Drewerman afirma: “Deus não está perto das pessoas só quando elas estão no limiar do abismo, mas também quando estão felizes.”

Será que, às vezes, nós também não nos deixamos cair nesse modo de viver a fé, de modo pessimista e talvez um pouco masoquista? No mundo atual, temos muitas razões para viver angustiados e assumir sobre nós as chagas e dores da sociedade, como Jesus fez. Mas, a cruz de Jesus seria assumir isso testemunhando a comunhão com Deus, um amor infinito e uma realidade nova na vida que é o reino de Deus.

Como viver isso?

Todos nós temos motivos de sobra para sentir ressentimentos, mágoas e mesmo a frustração de ver muitos sonhos derrubados e destruídos por uma sociedade cruel e mesmo em torno de nós nas relações cotidianas que nem sempre são fáceis. No entanto, a fé é uma opção de teimosia e de gratuidade a qual Deus nos chama e nos revela através de cenas como a da transfiguração. Às vezes, penso que essa cena não é a transfiguração de Jesus e sim dos três amigos que se tornaram capazes de ver a luz que Jesus sempre teve e sempre viveu. Quantas vezes, eu vivo em meio a vocês, convivo com pessoas maravilhosas e não sou capaz de ver a luz que Deus acendeu nelas.

Sou capaz de ver os defeitos mas valorizo menos e não me deslumbro com a luz e a beleza que as pessoas que estão mais perto de mim podem me revelar. – A palavra grega “transfigurado” significa: transformar-se, assumir uma nova forma de ser. São Paulo escreve que Jesus deixou a forma divina e assumiu a forma de um escravo, e até a sua morte (Filipenses 2: 5 ff). O Evangelho diz que para fazer isso, ele revela em si uma presença divina, mesmo escondida sob o jeito comum de um homem.

A transfiguração de Jesus foi a mudança nos olhos do coração de Pedro, Tiago e João. Jesus foi sempre o mesmo e tinha essa luz de Deus presente nele permanentemente. Os discípulos é que só a viram quando naquele momento no alto da montanha o viram rodeado dos antigos profetas Moisés e Elias e o viram como cheio de luz e beleza.

Quem sabe, para isso, olhar o próprio texto de Marcos que conta a transfiguração pode nos ajudar. Ele começa dizendo: “Seis dias mais tarde …”. Seis dias mais tarde com relação a que? O que tinha acontecido seis dias antes? A conversa dura de Jesus com Pedro. Jesus tinha anunciado que iria a Jerusalém para morrer e Pedro lhe respondeu: Não, Deus me livre. Pedro rejeitou a cruz e Jesus disse a Pedro: Você está fazendo o papel de Satanaz para mim… Passe para trás. Seis dias depois…. Todo um tempo…

Na tradição bíblica, a partir do livro do Gênesis, “o sexto dia” recorda a criação do ser humano. Marcos retoma essa tradição como para dizer que a paixão de Jesus é a criação de uma nova humanidade. O tempo em que Deus criou o mundo. Jesus consegue recriar o projeto divino nos olhos e no coração de Pedro.

A narrativa de Marcos tem muita semelhança com Êxodo 24: 12-18. Esse texto antigo, fala da experiência de Moisés que, junto com Josué sobe a montanha para ouvir a voz de Deus, vinda no meio da nuvem. Agora, no evangelho, Jesus toma os três discípulos mais próximos dele, os mais íntimos e faz a mesma coisa. Isso mostra que nós todos somos chamados a ver a presença divina em Jesus. Essa presença divina nos diz: Escutem-no. Isso significa que precisamos ouvir a voz do Filho amado de Deus para assumir, em nosso modo de ser e agir, o jeito de Jesus e sua humilhação e cruz.

  • A transformação que Jesus vive na montanha tem relação com a promessa que ele tinha feito e que aparece no começo desse capítulo de Marcos: “Digo-lhes que alguns dos que estão aqui não sofrerão a morte sem antes ver o reino de Deus já chegando com poder” (Marcos 9: 1).
  • A transfiguração mostra em Jesus alguns sinais concretos desse reino futuro. São sinais que aparecem em algumas manifestações divinas na Bíblia: a alta montanha, uma nuvem luminosa e a voz que fala do meio da nuvem (Ex 19, 19). No Sinai, se ouviu a voz de Deus dizendo que a comunidade de Israel seria o seu filho amado (Ex 19, 4-6).
  • Na segunda manifestação de Deus, na mesma montanha (Horeb ou Sinai), Deus se revela ao profeta Elias como o Deus de Israel (1 Rs 19, 36 e seguintes). Agora, Jesus é quem resume toda essa história. Por isso, Moisés e Elias aparecem junto com Jesus. Pedro propõe fazer tendas. É o ambiente de toda festa judaica das tendas (Shukkot). Mas, Jesus diz que não há necessidade de armar as barracas. Deus faz de Jesus e de todos nós a sua tenda no mundo.

Seria bom que, ao lermos esse evangelho, cada um/uma de nós pudéssemos pensar como hoje participamos dessa experiência de transfiguração dos discípulos de Jesus. Que coisas ou experiências de vida nos têm ajudado na nossa caminhada de discípulo ou discípula de Jesus.

Hoje em dia conseguimos identificar a transfiguração nas pessoas que cumprem e vivem a palavra de Deus, que é uma dádiva do amor que Cristo nos deixou.

Tentamos muitas vezes viver como os discípulos. Queremos construir a tenda, mas será necessário descer a montanha e viver a experiência da luz divina em nós em nossas lutas cotidianas e em nossos relacionamentos do dia a dia. Revelar essa luz divina e essa beleza da transfiguração permanente nas pessoas que nos cercam mas também nas organizações sociais e que trabalham pela transfiguração da sociedade toda é nossa missão de discípulos e discípulas de Jesus. É fixando os olhos em Jesus e nos unindo profundamente a ele em seu caminho pascal que vamos pouco a pouco nos deixando transfigurar e ajudando os outros, em torno de nós a nos transfigurar também.

A transfiguração é o sinal da vitória, onde a vida supera a morte. Contudo, Pedro cai na acomodação, em uma atitude triunfalista. E nesse momento “Desceu, então, uma nuvem, cobrindo-os com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz:

“Este é o meu Filho amado. Escutai-o! E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém: só Jesus estava com eles.” (9, 7-8).

A vitória não surge de forma mágica, sem o seguimento de um projeto que enfrenta um sistema que domina há anos. É preciso realmente refletir sobre quem é Jesus, quem é Jesus para mim e como em minha vida transpareço ou não o rosto de Jesus presente no mundo e para as pessoas que amam.

Fonte: Texto de Marcelo Barros, monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas, das tradições religiosas e dos movimentos populares (especialmente o MST). Publicado no blog do autor, 26/02/2018.

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