por Alexandre Putti via Carta Capital*
Frase é da pastora trans Alexya Salvador. Conheça líderes religiosos que abraçam as minorias e defendem o Estado laico
A escada vertical e claustrofóbica deságua em um amplo salão modestamente decorado. No extremo oposto, um altar abriga uma Bíblia. Do lado direito, camisinhas misturam-se a cartilhas de prevenção de doenças sexuais. “Sexo não é pecado. Pecado é não se prevenir”, afirma Alexya Salvador, ao mostrar a sede da Igreja Comunidade Metropolitana de São Paulo, instalada em uma rua movimentada do Centro do capital. Há quatro anos, todos os domingos, Alexya ergue-se neste espaço diante de dezenas de fiéis para pregar a palavra de Deus. Da sua boca saem frases diferentes daquelas que fazem a fama de pastores midiáticos e políticos. Não se fala de culpa nem de cura, não se blasfema contra os inimigos da fé, não há a pretensão de se formar um exército para a guerra santa.
Ao contrário, a Comunidade Metropolitana esforça-se em seguir os ensinamentos de Jesus Cristo: acolher, compreender, orientar. “Deus não está acima de tudo, Deus caminha com a gente. Jesus e Deus estão conosco. Eles não estão acima de ninguém, eles caminham com seu povo”, resume, em contraponto ao famoso slogan do governo Bolsonaro.
Os fiéis da Comunidade Metropolitana têm uma trajetória parecida com aquela da pastora Alexya. Considerados “párias”, vítimas de preconceito, frequentemente rejeitados em outras igrejas, descobriram no culto no Centro de São Paulo que sua orientação sexual não é um passaporte para o inferno ou um pecado a ser curado com doses de versículos e calmantes. Alexya é a primeira pastora trans da América Latina e está prestes a se tornar reverenda, o mais alto grau da igreja que a abraçou quando ela quase havia perdido a esperança de encontrar conforto no Cristianismo.
A pastora sempre acreditou em Deus, mas por vezes duvidou de que esse amor fosse retribuído. Quando ainda se chamava Alexander, chegou a frequentar um seminário católico, religião da família, mas em certo momento ouviu que sua orientação sexual o levaria irremediavelmente à companhia do Demônio. “O Deus que me apresentaram era homérico”, recorda. “Ficava de olho em mim com um caderno na mão, anotando tudo que eu fazia. Mas hoje entendo que, na verdade, ele cuidou de mim esse tempo todo, mesmo quando eu não o conhecia de fato. Eu achava que o conhecia, mas só fui tocada quando cheguei à ICM.”
Primeira pastora trans da América Latina, Alexya Salvador está prestes a ser ordenada reverenda na Igreja Comunidade Metropolitana
Alexya integra um movimento crescente no Brasil em torno de igrejas e lideranças religiosas inclusivas, uma reação direta ao fundamentalismo, principalmente entre os evangélicos, que se tornou um negócio lucrativo, um mecanismo de chantagem ideológica e um trampolim eleitoral. O padre anglicano Arthur Cavalcante é outro expoente dessa tendência. Casado com um homem, o recifense entende que assumir sua sexualidade era pré-requisito para exercer o sacerdócio com plenitude. Ao contrário da vertente romana, religiosos anglicanos têm a permissão para se casar. “Eu não poderia ter uma abertura com Deus e ter meus desejos reprimidos, isso é uma negação do próprio Deus. Foi muito difícil, mas aconteceu e deu certo.”
Vítima de preconceito
Ele viu-se obrigado a trocar o Recife natal por São Paulo para escapar das reprimendas de um superior – Cavalcante acredita que o neofundamentalismo cristão só pode ser combatido com a interpretação contextualizada das Escrituras. Os Evangelhos, afirma, foram escritos por homens e não psicografados por Jesus. “Os reacionários escolhem alguns versículos e excluem outros, justamente aqueles que apoiam o preconceito, o ódio e a visão de um Deus tirano. Mas e os versículos que falam que Deus é amor? Que defendem amar seus inimigos?”, pergunta.
Sob seu comando, a Paróquia da Santíssima Trindade, também no Centro da capital paulista, tornou-se um refúgio para os “excluídos” e um espaço de congregação do pensamento cristão mais arejado. “É muito fácil dialogar com aquele Jesus de 2 mil anos atrás. O problema é identificar esse Jesus na sociedade de hoje. Jesus foi torturado e tem muitos cristãos que apoiam a tortura. É uma fé que justifica a violência. Deus não tem nada a ver com essa fé, com essa piedade maquiavélica.”
A defesa de causas comuns reuniu Cavalcante e Valéria Cristina, líder do grupo “Evangélicas pela Liberdade de Gênero”. Pesquisadora de Ciências da Religião, Valéria envolveu-se diretamente com a militância por conta do que encontrou em suas análises acadêmicas. Ela descobriu, por exemplo, que a maioria das mulheres agredidas no País se declara evangélica. O índice alcança 80% no Espírito Santo. Responsabilidade do discurso machista e patriarcal que baseia as religiões de maneira geral, avalia. “A igreja faz parte desse problema, ela é responsável, mas ela pode ser parte da solução.”
A pesquisadora reuniu inúmeros relatos de mulheres instadas por pastores a perdoar a violência dos maridos, além de medir os efeitos da demonização do aborto nos cultos. Segundo ela, 25% das mulheres que interromperam a gravidez ao menos uma vez se declaram evangélicas, ante 56% que se disseram católicas. Defender tais ideias em um ambiente adverso não a desanima. “Esses movimentos são pela vida e quem está no poder não vai ficar para sempre. Sou muito positiva e acredito que ninguém vai voltar para o armário, as mulheres não vão voltar para os seus lares, a não ser por recato, e vamos continuar na resistência.”
Os riscos não são poucos. Alexya é constantemente ameaçada de morte nas redes sociais por suas declarações polêmicas, quando da vez em que definiu Deus como trans.
“Quem disse que Jesus é um homem branco cisgênero heterossexual? Ele também é. Mas acredito que ele seja mulher, negro, indígena, pois encarna a essência de Deus”, explica. A religiosa teme que um dia seu marido e seus três filhos leiam a seguinte manchete nos jornais: “Pastora trans é assassinada”. O Brasil, lembra, é o país com o maior registro de mortes violentas de transexuais do planeta.
Felizmente, revela a experiência de Alexya, o ódio não apenas se multiplica, como também gera antídotos. “Recebo muitas mensagens de apoio de LGBTs, de parentes, de agradecimento por tê-los ajudado a compreender a questão de outra maneira… Isso me dá força.”
A fé, dizem as Escrituras, move montanhas. E, como se vê, também as ideias.
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Colaborou Giovanna Galvani. Publicado originalmente por Carta Capital.
Imagem de capa: via Carta Capital.
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