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Carta ao Padre Julio Lancelotti

Não há nenhuma novidade na perseguição que algumas figuras da elite e agora na Câmara Municipal de São Paulo movem contra o padre Júlio Lancelotti. Quem acompanhou a trajetória da Irmã Dulce dos Pobres, em Salvador, embora fossem tempos diferentes e o modelo de trabalho pastoral entre a irmã Dulce e o padre Júlio também eram diversos, mesmo assim, as crônicas apontam que figuras do legislativo baiano a acusavam de tudo o que era negativo e do mal. Como diz o evangelho, “felizes sereis vós, quando, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque assim também eles trataram os profetas que atuaram antes de vós” (Mt 5, 12).

Em seu livro, “O Jesus Histórico”, o teólogo evangélico alemão Gerd Theissen (Ed. Loyola, 2002) afirma que alguns dos apóstolos de Jesus eram mais ou menos pessoas marginalizadas pela sociedade e que teriam vivido como “pessoas de rua”. A expressão Boanerges é o apelido dado por Jesus aos dois irmãos Tiago e João que, em geral, nossas versões do texto traduzem como “filhos do trovão” (Mc 3, 17). Convertendo essa expressão ao aramaico, o exegeta alemão afirma que Jesus pode ter querido dizer “filhos do deserto”. Seria a expressão usada para designar pessoas em situação de rua. E é nesse contexto que, em determinado momento, Jesus afirma: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 58). Nessa afirmação, o Filho do Homem pode ser traduzido simplesmente por “O humano”, ou seja, Jesus, mas também as pessoas que estavam com ele.

Em tal compreensão do evangelho, a Pastoral da Rua teria sido a primeira pastoral do movimento de Jesus. É claro que, historicamente, não dá para equiparar a situação de rua em uma aldeia da Galileia do primeiro século da nossa era com a realidade enfrentada pela enorme e crescente população de rua na atual região central de São Paulo. Tal diferença só torna mais premente e bem mais essencial que, como nos primeiros séculos da Igreja falou o diácono Lourenço a ser interrogado sobre os possíveis tesouros que a Igreja possuiria em Roma. São Lourenço respondeu sem hesitar: “Aí está o tesouro da Igreja”. E apontou para as pessoas mais pobres entre os pobres.

Na América Latina, a 2ª conferência dos bispos católicos em Medellín, Colômbia, 1968, definiu que a Igreja deve ser serviço libertador para todo o povo e a pastoral não é apenas um instrumento para trazer pessoas à fé cristã e sim um serviço para que as pessoas possam se libertar de tudo o que as oprime (Cf. Med 5, 15). A partir daí, a Pastoral Indígena deixou de ser um trabalho para catolicizar os indígenas e sim um serviço para ajudá-los na sua luta pela terra e pela sua autonomia cultural. A Pastoral da Terra vai além da catolicizaçao antes praticada pela pastoral rural. Também o trabalho pastoral com o povo da rua segue essa orientação.

Em algumas cidades brasileiras, desde os anos 1960, oblatas e oblatos beneditinos iniciaram o trabalho da OAF – Organização do Auxílio Fraterno. Jovens saíam em grupo pelas ruas à noite oferecendo sopa ou cafezinho às pessoas que jaziam pelas calçadas. Nas décadas seguintes, a esse tipo de presença gratuita e amiga, se juntou uma organização para juntar os catadores de material reciclável em cooperativas e a formar organizações de solidariedade. Júlio Lancelotti representa a arquidiocese de São Paulo nesse trabalho e atua com uma equipe leiga e voluntária de grande valor. Ao atacar o padre Júlio e afirmar inverdades e todo tipo de injúrias sobre a pessoa dele e o seu trabalho, esses inimigos do povo desconhecem que há todo um trabalho comunitário que vai além da pessoa do padre Júlio e estão apenas repetindo o que os racistas fizeram contra Nelson Mandela na África do Sul na época do apartheid e contra o pastor Martin-Luther King nos Estados Unidos na sua luta pacífica e não violenta pelos direitos civis do povo negro. De fato, hoje, Nelson Mandela e Luther-King são considerados heróis que receberam o Prêmio Nobel da Paz. Os seus detratores nem têm mais seus nomes escritos na história. Só a justiça e o direito permanecem.

 

Padre Júlio Lancelotti, querido irmão amigo e companheiro de caminhada,

Como diz o livro do Apocalipse: você é irmão e companheiro na aflição e no testemunho de Jesus e do reinado divino no mundo (Ap 1, 9). O profeta João estava prisioneiro na ilha de Patmos por seu testemunho do Cristo. Você está a toda hora sofrendo perseguições e todo tipo de calúnia pelo fato de viver e testemunhar o amor de Deus pelas pessoas empobrecidas e marginalizadas nas ruas e praças de São Paulo. Diante do tamanho da desumanidade da elite e das pessoas que a representam no legislativo local, estadual e federal, só podemos nos unir de coração a você e afirmar como diz o Batista no quarto evangelho: “Eu vi descer sobre você, descer suavemente, como um voo de pomba, o Espírito de Deus e vi que desceu e permanece em você” (Jo 1, 34).

Júlio, você e toda a equipe de Pastoral da Rua, contem afetiva e efetivamente com o meu apoio e o dos irmãos e irmãs jovens que fazem comigo a Secretaria Ecumênica.

Seu irmão, Marcelo Barros


Foto: Alexandre Battibugli/Veja SP

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