Direitos Humanos

Você precisa conhecer Tatiane [Winnie Bueno]

Esta é mais uma coluna sobre silenciamento, racismo, cárcere, seletividade do sistema penal, interseccionalidade e a morte da população. Uma coluna que fala sobre  os efeitos perversos da estrutura racial mas que também é um pedido de socorro.

Um pedido para que ao menos uma vez a empatia e a solidariedade estejam a serviço das mulheres negras.

A história que eu vou relatar nas linhas que seguem chegou até mim via Suzane Jardim. Eu desconhecia a existência dessa história e o meu desconhecimento me deixou absurdamente revoltada comigo mesma. Fiquei me questionando porque eu não sabia da história de Tatiane, fiquei com o estômago embrulhado por não saber. O relato completo sobre Tatiane está disponível na página do DDH  e eu vou resumir aqui a situação absurda, racista e misógina da qual Tatiane é vítima.

Tatiane da Silva Santos é uma jovem negra cuja a vida é marcada pela violência e pela ausência dos direitos mais fundamentais de cidadania. Direitos que são cotidianamente negados para mulheres negras em todos os lugares da diáspora em razão do contínuo de iniquidades raciais que se estabelecem por toda a América.

A história de Tatiane diz muito sobre racismo, seletividade do sistema penal, interseccionalidade e a continuidade da lógica de encarceramento, criminalização e punição de mulheres negras que se estabelece na história desse país desde sempre.

O seu primeiro crime foi nascer mulher negra, o segundo foi ser mãe. Na juventude, Tatiane viveu a vida toda imbricada em um cenário de violência, pediu auxílio ao Estado, não obteve acolhimento. Ao tentar sobreviver, viu o filho morrer por negligência do pai. Hoje, Tatiane responde criminalmente pela morte de seu filho.

O direito é um sistema tão fortemente marcado pelo machismo, que Tatiane foi hostilizada pela promotora dentro das lógicas mais perversas inscritas nos estereótipos desumanizadores sobre mulheres negras, aquela da preta obcecada pelo sexo e aquele outro da mãe negra negligente.

Julgada por outras mulheres, foi lida com as lentes do racismo machista que culpabiliza mulheres negras, que transforma a vítima em ré.  Para mulheres negras não existe presunção de inocência possível, somos culpadas antes mesmo de irmos a julgamento. Para nós a justiça não existe, as definições sobre nossas condutas estão pré-estabelecidas por padrões que são construídos para a nossa desumanização e para a obstaculização do acesso à justiça.

Não há contraditório, não há ampla defesa, a morte e o cárcere estão na ponta da espada de uma justiça que , para nós, está de olhos bem abertos e não tem a menor dúvida sobre o tamanho da punição que temos que receber por sermos negras.

O Direito Penal tem cor. A seletividade desse sistema está diretamente relacionada com a lógica de encarceramento em massa da população negra e mulheres negras não tem sexo.

Elas não são alcançadas pelo discurso genérico do feminismo, as políticas públicas e leis voltadas a proteção da mulher não alcançam as mulheres negras porque desde sempre não somos lidas como mulheres, somos menos humanas, somos abjetas, a sociedade nos odeia e é bastante explícito que não nos ouve.

A vigência da lei Maria da Penha, que se aplicaria perfeitamente ao caso de Tatiane, não significou mudança alguma nas nossas vidas, enquanto políticas públicas e ações que se destinam a equidade de gênero atingem e modificam as condições de vida de mulheres brancas, as nossas condições de vida pioram.

Os dados a respeito dos anos da Lei Maria da Penha visibilizam bem essa questão: a morte de mulheres brancas reduziu, a nossa morte aumenta a largos passos. E esse é um indício bastante evidente que toda a estratégia de política pública que não é orientada a partir de uma perspectiva racial não apenas não elimina os efeitos da demanda para a qual ela é orientada, como aumenta em números significativos o problema para a população negra.

Tatiane é um jovem, encarcerada injustamente em uma lógica punitivista que se orienta em aplicar penas para aqueles e aquelas que não são considerados cidadãos: pessoas pretas.

Os movimentos sociais, juristas, ativistas dos direitos humanos, feministas, políticos progressistas, ONG’s, celebridades que se dizem comprometidas com a justiça social precisam denunciar e se mobilizar para que Tatiane tenha um julgamento justo, condizente com os fatos, em que ela não seja humilhada, torturada verbalmente e condenada a apodrecer em uma prisão apenas por ser uma mulher negra.

A Tatiane sou eu.

A Tatiane é a sua colega negra da universidade.

A Tatiane é a representação das mulheres negras deste país, e nós precisamos urgentemente nos importar e lutar pela vida de Tatiane. O mundo precisa saber como o Direito brasileiro trata as mulheres negras, o mundo precisa saber que Tatiane está presa e seu crime é ser uma mulher negra.

Fonte: Winnie Bueno é Iyaloríxa, Mestranda em Direito Público pela Unisinos/RS. Publicado no site Justificando, 18/10/2017. Título original: Você, que de alguma forma crê em direitos humanos, precisa conhecer Tatiane.

Foto de capa: Reprodução/Facebook Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH.

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