O ser humano sente que existe um “Ser superior” que foi origem de tudo o que há. Percebe sua presença na natureza e na própria vida a ponto de fazer suas as palavras do salmista
“Tu me envolves por detrás e pela frente, e sobre mim colocas a tua mão”
(Sl 139, 5).
Diante dessa presença inefável tanto o homem quanto a mulher procura na religião um contato maior para manifestar sua gratidão, seu amor por todos os benefícios adquiridos além de pedir proteção. Nesse caso a religião torna-se ponte de ligação entre a divindade e a pessoa. Nesse contato entre o finito (homem/mulher) e o infinito (divindade) pode acontecer que a pessoa se torne mais compreensiva, mais aberta, enfim mais humana ou se torne intolerante, fechada, ou seja, desumana.
Infelizmente o que se vê no dia no dia são pessoas intolerantes para com quem professa uma fé diferente. Acham-se donas do transcendente. Pode-se dizer que elas são “latifundiárias de Deus”. Só elas têm a divindade, as outras não. Um exemplo disso foi o que aconteceu com um aluno que foi agredido verbalmente por uma professora evangélica em sala de aula por fazer parte do Candomblé, religião de matriz africana. Ela ao ver que ele usava colares de contas (símbolo da religião que professava) não pensou duas vezes chamando-o em voz alta de “demônio” e “filho do capeta”. 1
Será que Deus vibrou de alegria por esta atitude de intolerância religiosa? Claro que não! Deus acolhe todas as religiões, pois não tem preconceitos. O que Ele quer é que cada pessoa mude de vida, deixe de praticar contra o próximo tudo aquilo que diminui a vida e causa sofrimento:
O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente (Is 58,6-7).
Se uma religião quer ser ponte de ligação entre Deus e o ser humano tem que ensinar a valorizar o outro. Tem que ensinar a respeitar o semelhante. Tem que ensinar a amar o próximo porquanto a divindade nele habita. A ligação entre divindade e humano se dá concretamente no bom relacionamento que as pessoas têm entre si. É preciso ter olhos para ver o transcendente presente no irmão, na irmã. Cada pessoa, não importa o credo que professa deve ser bem tratada e o mandamento central deixa claro isto ao afirmar “Não mate” (Ex 20, 13).
Esse mandamento quer preservar a vida, ou seja, proíbe que se pegue uma arma e se tire a vida do outro. Significa também não matar o irmão, a irmã que pertence a outra religião. E quantas mortes acontecem no dia a dia pela intolerância religiosa? O caso citado é um exemplo disso. Em nome de Deus, em nome da religião está se matando uma pessoa ao afirmar para ela que sua religião não é de Deus. Isso é sério demais. Isso machuca, e pode tirar o chão de qualquer um (dependendo do conhecimento e da fé de quem sofre tal investida).
Não se pode negar que ao longo dos tempos tem havido guerra entre as religiões. Fiéis de religiões diferentes têm se agredido, têm se matado e tudo isso feito em nome do Ser Supremo no qual creem piamente está agindo, realizando assim a sua vontade. Será mesmo vontade de Deus este combate que fazem entre si as religiões?
Com certeza o transcendente não quer que fiéis da religião “A” agridam fiéis da religião “B” mas que superem esse mal terrível que é a intolerância religiosa. Para que esse mal seja extirpado é necessário que se viva a regra de ouro proclamado pelas religiões, ou seja, cada pessoa antes de dizer que a religião do outro é falsa e demoníaca se pergunte se gostaria que alguém lhe afirmasse isso a respeito de sua religião. E para os católicos (sou um deles) antes de falar contra outra religião lembre: você gostou quando o Pastor Sérgio Von Helder da Igreja Universal em 1995 chutou a imagem de Nossa Senhora? 2
O olhar para o outro (a outra)
É necessário ter um olhar mais amplo. Deixar a visão mesquinha e fechada que vigorou por muito tempo e cujos frutos amargos existem até os dias de hoje. Essa visão afirmava que somente os que estavam na Igreja Católica alcançariam a salvação. Os demais de maneira nenhuma teriam essa felicidade mesmo que derramassem o próprio sangue pelo nome do filho de Deus, mas teriam como destino o inferno. (ALBERIGO, Apud BERGERON, 2009. p.74)3.
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Esse pensamento excludente é ainda encontrado dentro de uma grande parte da Igreja Católica o que é lamentável. No Protestantismo se pode também ver essa visão “no tríplice princípio sola fide, sola gratia, sola scriptura (só a fé, só a graça, só a Escritura). Fora disso tampouco há salvação” (VIGIL, 2006. p. 75) 4. No entanto, é bom que se afirme que não é toda a Igreja Protestante que tem esse pensamento.
Não é nada fácil romper com esse exclusivismo que ainda impera dentro de cada religião. Tal exclusivismo acredita que apenas uma religião foi revelada por Deus sendo possuidora da verdade e que, portanto é a única verdadeira religião. As outras não salvam (VIGIL, 2006. p. 63) 5. Isso é colocado dentro da cabeça do fiel de modo que é difícil de enxergar com bons olhos a religião do outro. Foi-lhe ensinado e isso ficou gravado no seu interior de que as outras religiões devem ser combatidas, pois ensinam falsas doutrinas. São inimigas de Deus. Devem ser eliminadas.
Percebe-se claramente duas coisas: primeiro que a intolerância religiosa, o exclusivismo gera a exclusão dos que não professam a mesma fé e toda exclusão produz morte indo assim contra o projeto de Deus que é vida e liberdade para os homens e mulheres. Segundo que coloca no centro a religião (Igreja) e não Deus, quer dizer, bastaria que a pessoa estivesse na religião “A” ou “B” para alcançar a salvação. Aqui inevitavelmente surge uma pergunta: “onde estaria o amor de Deus que condena quem não está na religião “A” ou “B” embora ame o próximo, pratique a justiça?” Se isso fosse verdade esse seu “amor” tão falado não passaria de uma caricatura.
Deus não condena ninguém por não fazer parte de uma determinada religião. Para ele a pessoa é mais importante do que qualquer credo religioso. Se a gente olhar para o Evangelho de Lucas 6,6-11 ou para o Alcorão verá que isso é verdade.
No Evangelho Lucas afirma que se encontrava na sinagoga um homem com a mão direita seca e que Jesus diz a ele para se levantar e ficar no meio e o cura em pleno sábado contrariando a “Religião” que proibia qualquer trabalho nesse dia, pois era o dia do Senhor. O homem é colocado por Jesus no centro da Sinagoga mostrando assim que para Deus a pessoa vale mais do que qualquer Religião/Igreja.
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No Alcorão cujo assunto fundamental é o relacionamento entre Deus e a humanidade6 se verá que: “Todas as suras, menos uma só, começam com a saudação: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso” (Mansour, [2002]. p.19)7 significando assim que Deus sem dúvida nenhuma tem a pessoa como mais importante não porque se encontra na Religião/Igreja tida como a querida por Ele mais devido a sua própria Clemência e Misericórdia de criador que não abandona nenhum ser por causa de professar este ou aquele credo. Seria ir contra sua essência de “ser” Clemente e Misericordioso condenar qualquer filho/filha seu/sua por não fazer parte desta ou daquela “Religião/Igreja” anunciada como a única que tem toda a verdade revelada.
A divindade deu ao ser humano a liberdade. Ele é livre para exercê-la. É livre para professar a fé e de modo algum deve ser pressionado a renunciar o seu credo e abraçar outro. Deus mesmo respeita o ser humano não obrigando a nada, nem mesmo a crer nele ou a amá-lo, portanto ninguém tem o direito de forçar a quem quer seja a aderir uma religião seja ela cristã ou não. A própria Igreja Católica após o Concílio Vaticano II proclama isso:
Para que o ato de fé seja humano, “o homem deve responder a Deus, crendo por livre vontade. Por conseguinte, ninguém deve ser forçado contra a sua vontade a abraçar a fé. Pois o ato de fé é por sua natureza voluntário”. “Deus de fato chama os homens para o servirem em espírito e verdade. Com isso os homens se obrigam em consciência, mas não são forçados… Foi o que se patenteou em grau máximo em Jesus Cristo”. Com efeito, Cristo convidou à fé e â conversão, mas de modo algum coagiu. “Deu testemunho da verdade, mas não quis impô-la pela força aos que a ela resistiam. Seu reino… se estende graças ao amor com que Cristo exaltado na cruz atrai a si os homens” (Catecismo da Igreja Católica Nº160)8.
Religiosidades
Infelizmente têm surgido nas religiões muitos “Procustos”. Cada um deles com sua “cama”. Procusto (mitologia grega): tinha uma cama de ferro. Ela era exatamente do seu tamanho. Ela era do tamanho de sua estatura e de sua visão de mundo. Achava que a sua visão era a única certa. Não admitia nada além de seu próprio mundo, de sua estatura, de sua medida, do tamanho de sua cama. Procusto seduzia os viajantes para se deitarem nesta cama. Se a sedução não desse o resultado desejado por ele, então, prendia-os à força. Se os hóspedes fossem altos, ele cortava o excesso para ajustá-los à cama. Os baixinhos eram esticados até atingirem o comprimento suficiente para caberem perfeitamente em sua cama (WENZEL; ROSSI; WITTER, 2011. p. 42) 9.
A religião (“A” ou “B”) não deve ser Procusto e nem fabricá-lo. Deve sim ser respeitosa e produzir pessoas tolerantes capazes de conviver com as diferencias, com as diversidades. Agindo assim estará verdadeiramente sendo ponte de ligação entre o divino e o humano e promovendo a paz.
Referências bibliográficas:
1.Disponívelem<http://
2.Disponível em <http://www.blogdicas.net/
3. BERGERON, Richard. Fora da Igreja também há salvação. Tradução: Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2009.
4. VIGIL, José Maria. Teologia do pluralismo religioso. Para uma releitura do cristianismo. Tradução: Maria Paula Rodrigues. São Paulo: Paulus, 2006.
5. IDEM.
6.Diponíveleem<http://www.
7. O Alcorão. Tradução: Mansour Challita. Rio de Janeiro: Associação Cultural Internacional Gibran, [2002].
8.Disponível<http://www.
9.WENZEL, João Inácio; ROSSI, Roberto; WITTER, Teobaldo. Fundamentalismos: Relação entre Religião, Política e Direitos Humanos. Série “A Palavra na Vida” nº 287. São Leopoldo: CEBI, 2011.
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Fonte: texto de Ribamar Portela, assessor do CEBI.
Foto de capa: Delf Renniel Rivera.