A mulher de Urias, é como é apresentada Betseba na genealogia das “nada ortodoxas” mães de Jesus no Evangelho de Mateus. No início fiquei intrigada o porquê negar seu nome próprio. Mas ao final, compreendi que talvez essa foi uma maneira da narrativa de honrar a história da violada esposa de Urias e a memória do seu assassinado esposo. Você pode conhecer um pouco da história de Betseba nas narrativas palacianas do reinado de Davi e Salomão. Digo pouco, porque o narrador pouco fala dela e de seus sentimentos. No contexto da história isso não era importante. Betseba é descrita pela tradição hebraica como uma mulher belíssima. Ela era filha de Eliã e esposa de um dos generais do exército de Davi, Urias. Ela morava em uma casa perto do palácio real que tinha um pátio interior, lugar bom para tomar banho em dias muito quentes. Em uma tarde ela estava fazendo seu banho de purificação depois do período menstrual, sem saber que do terraço da casa real o rei Davi, a olhava cobiçosamente. Logo que a viu procurou saber quem era aquela bela vizinha, e foi informado que ela era esposa de Urias, o que impedia que ela a possuísse. Na monarquia patriarcal, o rei podia ter quantas mulheres quisesse, mas não era permitido tomar uma mulher casada, não em respeito às mulheres, mas em respeito aos preceitos da honra masculina. Tomado pelo desejo e do poder real, Davi, enviou sua guarda real para buscar Betseba e levá-la até ele no palácio, onde a tomou sem seu consentimento, e depois a mandou de volta para casa.
“Estou grávida!” único registro da voz de Betseba nessa narrativa! Ela envia uma mensagem para o rei com esse comunicado: Estou grávida! O que isso significou para ela? Como ela estava se sentindo em relação a gravidez? Mais, uma vez, o narrador não se importa com ela. Mas, imaginemos como se sentem as mulheres que descobrem que estão grávidas depois de um abuso sexual? Quais os sentimentos e conflitos vividos por uma mulher durante uma gestação que carrega a marca do estupro sofrido? Ao receber a mensagem, o rei planeja encobrir seu crime, ordenando a volta de Urias do campo de batalha, para que ele pudesse ter relações sexuais com a esposa e assim atribuir a ele a gestação. Porém, isso não ocorreu. Urias permaneceu no palácio sem ir ter com a esposa, por fidelidade ao cumprimento de sua missão de proteger o rei. Que ironia! Assim, o rei Davi recorre a método mais violentos para proteger sua própria pele da culpa: Envia Urias de volta com a seguinte mensagem para o comando da tropa: “Coloquem Urias na linha de frente, onde a batalha é mais forte, e retirem-se da retaguarda. Então, ele será ferido e morto. Assim aconteceu. Ao saber da morte do seu marido, Betseba chorou por seu marido. Davi esperou passar o luto e mandou buscar Betseba e trazê-la para sua casa, tornando-a mais uma de suas esposas. O filho dessa gestação banhada de violência morreu, mas, Betseba, engravidou de outro filho de Davi: Salomão. Assim, é que Betseba torna-se mais uma das mães nada ortodoxa de Jesus: Obede gerou Jessé; e Jessé gerou o rei Davi. Davi com a mulher de Urias, foi o pai de Salomão. (Mateus 1:6-7).
Betseba tem sido frequentemente retratada nas leituras patriarcais-fundamentalista com uma mulher tentadora e adúltera, que propositalmente foi tomar banho com seu belo corpo desnudo na área externa da sua casa para ser vista pelo rei Davi. A partir dessa perspectiva, a culpa foi de Betseba e não do rei Davi. Culpar as mulheres vítimas de estupro, pela roupa que usava, pelo lugar que estava é uma velha estratégia de proteção dos abusadores sexuais no sistema patriarcal. Além de Betseba, muitas mulheres foram vítimas de abuso sexuais na casa do monarca Davi. Inclusive sua filha Tamar foi abusada pelo meio irmão Amon, e Davi silenciou o caso, acobertando o filho.
Além de lidar com os traumas, cicatrizes físicas e emocionais, o silenciamento das suas dores, as mulheres vítimas de estupro, sofrem com a cultura que culpabiliza sempre as mulheres e protege os abusadores.
Qual importância de que uma mulher que sofreu abuso e violência sexual ter sido escolhida para ser uma das mães “nada ortodoxas de Jesus? A meu ver, além de ser um sinal de solidariedade de Deus com os corpos violados das mulheres, é também uma denúncia a todos aqueles que usam o poder de forma abusiva e violenta. Por isso Deus não deixou o rei Davi passar impunemente. Enviou o profeta Natã à Davi para lhe contar a seguinte parábola: “Em certa cidade havia dois homens: um rico e um pobre. O rico tinha muitas ovelha e bois. O pobre não tinha nada, somente uma pequena ovelha que tinha comprado. Ele a criara, e ela havia crescido com ele e com seus filhos. Ela comia do seu pão e bebia da sua taça. Dormia em seu colo e era para ele como uma filha. Um viajante foi ao homem rico, e este se recusou a tomar uma das suas ovelhas ou algum de seus bois e prepará-los para o peregrino que tinha vindo a ele. Pegou então a ovelha do homem que o visitava”. A ira de Davi se inflamou contra esse tal homem. E disse a Natã: “Tão certo como Deus vive, o homem que fez isso é réu de morte. E pela ovelha ele restituirá quatro vezes, por ter feito tal coisa e porque não teve piedade.”. o profeta Natã disse a Davi: Esse homem é você!”
O profeta Natã e sua parábola “deixou o rei nu”. Ao mesmo tempo que desmascarou o rei, inocentou Betseba, retratando-a com a ovelha do pobre que foi tomada sem escrúpulo e servida como janta”. Onde estão esses profetas hoje? Onde estão as profecias que desnudem “o rei” e suas violências e agressões às mulheres? Concluo com a frase de Martin Luther King Junior: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”!
Por Odja Barros